"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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A visita da velha senhora - Friederich Dürrenmatt

A VISITA DA VELHA SENHORA Texto de Friedrich Dürrenmatt Tradução de Mário da Silva PERSONAGENS CLAIRE ZAHANASSIAN – Nome de Solteira: CLAIRE WAESCHER – Multimilionária MARIDO Nº 7 MARIDO Nº 8 MARIDO Nº 9 O MORDOMO TOBY – Mascando chicletes ROBY – Mascando chicletes KOBY – Cego LOBY – Cego SCHILL1 SUA ESPOSA SUA FILHA SEU FILHO O BURGOMESTRE O PÁROCO O PROFESSOR O MÉDICO O POLÍCIA CIDADÃO I CIDADÃO II CIDADÃO III CIDADÃO IV O PINTOR PRIMEIRA MULHER SEGUNDA MULHER A SENHORITA LUÍSA O CHEFE DA ESTAÇÃO O CONDUTOR DO TREM O CHEFE DO TREM O OFICIAL DE JUSTIÇA JORNALISTA I JORNALISTA II LOCUTOR DE RÁDIO CINEGRAFISTA LUGAR DA AÇÃO - Güllen (uma pequena cidade) ÉPOCA – Atualidade ATO I Antes que o pano suba, o toque da sineta de uma estação da estrada de ferro. Depois, a tabuleta: “Güllen”. O nome é, evidentemente, da cidadezinha que se entrevê, apenas indicada, ao fundo, arruinada, em plena decadência. Também o edifício da estação acha-se em péssimo estado: com ou sem grade, conforme o país, um horário dos trens, meio rasgado, na parede; um enferrujado conjunto de alavancas de chaves, uma porta com os dizeres: “Entrada Proibida”. Depois, no meio, a esquálida Rua da Estação, também apenas indicada. À esquerda, uma casinhola, sem qualquer enfeite, telhado de telha, cartazes rasgados nas paredes sem janelas. Tabuleta à esquerda: “Senhoras”, à direita: “Homens”. Tudo mergulhado num cálido sol de outono. Diante da casinhola, um banco, onde estão sentados quatro homens. Um quinto homem, em estado de indescritível desmazelo, como os demais, está pintando uma faixa com tinta vermelha, para uma manifestação, evidentemente: “Bem-vinda Clarinha”. O estrondo ensurdecedor de um trem rápido passando a toda a velocidade. Diante da estação, o Chefe da Estação, em continência. Os homens sentados no banco indicam, com um movimento de cabeça, da esquerda para a direita, que acompanham a célebre passagem do trem. CIDADÃO I – O Nibelungo, Hamburgo-Nápoles. CIDADÃO II – Às onze horas e vinte e sete, passa o Rolando Furioso. Veneza-Estocolmo. CIDADÃO III – É a única diversão que ainda temos: ver passar os trens. CIDADÃO IV – Há cinco anos, o Nibelungo e o Rolando Furioso paravam em Güllen. E mais o Diplomata e o Ouro do Reno, todos rápidos de importância. CIDADÃO I – De importância mundial. CIDADÃO II – Agora, não param mais nem sequer os expressos. Só dois mistos de Kassigen e o expressinho de uma hora e treze, de Kalberstadt. CIDADÃO III – Estamos arruinados. CIDADÃO IV – As indústrias Wagner: falidas. CIDADÃO I – Bockmann: quebrado. CIDADÃO II – A Fundição Sol Nascente: fechada. CIDADÃO III – Vivemos do subsídio de desemprego. CIDADÃO IV – Da distribuição de sopa aos pobres. CIDADÃO I – Vivemos? CIDADÃO II – Vegetamos. CIDADÃO III – Agonizamos. CIDADÃO IV – A cidade inteira. (Toque de sineta.). CIDADÃO II – Já não é sem tempo que vem aí a milionária. Diz que em Kalberstadt fundou um hospital. CIDADÃO III – Em Kassigen, a creche, e na capital, um templo comemorativo. O PINTOR – Mandou pintar seu retrato por Zimt, o troca-tintas acadêmico. CIDADÃO I – E como tem dinheiro! Proprietária da Armenian Oil, da Western Railway, da North Broadcasting Company e do bairro dos cabarés de Hong Kong. (Barulho de trem. O Chefe da Estação faz continência. Os homens acompanham a passagem do trem com um movimento de cabeça, da direita para a esquerda.). CIDADÃO IV – O Diplomata. CIDADÃO III – E dizer que já fomos um centro de cultura. CIDADÃO II – Um dos primeiros do país. CIDADÃO I – Da Europa. CIDADÃO IV – Goethe passou aqui uma noite. No Hotel do Apóstolo de Ouro. CIDADÃO III – Brahms compôs um quarteto. (Toque de sineta.). CIDADÃO II – Berthold Schwarz inventou a pólvora. O PINTOR – E eu cursei com brilho a Escola de Belas-Artes e que é que acabei pintando? Faixas! (Barulho de trem. Da esquerda chega um Condutor, como se acabasse de saltar do comboio.). O CONDUTOR (Num grito arrastado) – Güllen! CIDADÃO I – O misto de Kassigen. (Um viajante desceu do trem, passa - vindo da esquerda - diante dos homens sentados no banco. Desaparece pela porta com a tabuleta “Homens”.). CIDADÃO II – O Oficial de Justiça. CIDADÃO III – Veio penhorar a Prefeitura. CIDADÃO IV – Também politicamente estamos liquidados. (O Chefe da Estação dá o sinal para o trem partir. Da vila chegam o Burgomestre, o Professor, o Pároco e Schill, homem de quase sessenta e cinco anos, todos vestindo roupas surradíssimas.). O BURGOMESTRE – A ilustre visitante chega com o expressinho de Kalberstadt, à uma hora e treze. O PROFESSOR – Vamos ter canto do coro misto e do grupo juvenil. O PÁROCO – E repiques do sino de tocar a rebate. Esse ainda não está no prego. O BURGOMESTRE – Na Praça do Mercado, já foi armado o coreto para a Banda Municipal e o Grêmio Ginástico vai fazer a pirâmide humana em honra da milionária. Depois, banquete no Apóstolo de Ouro. Infelizmente, as finanças não dão para a iluminação, à noite, da Catedral e da Prefeitura. (O Oficial de Justiça sai da casinhola.). O OFICIAL DE JUSTIÇA – Bom dia, Senhor Burgomestre. Os meus respeitos. O BURGOMESTRE – Que deseja por aqui, Oficial de Justiça Glutz? O OFICIAL DE JUSTIÇA – Isso, o Senhor Burgomestre já sabe. Vou ter um trabalho medonho. Experimente o que é penhorar uma cidade inteira. O BURGOMESTRE – A não ser uma velha máquina de escrever, na Prefeitura não vai encontrar nada. O OFICIAL DE JUSTIÇA – O Senhor Burgomestre esqueceu o Museu Cívico Güllense. O BURGOMESTRE – Há três anos que foi vendido aos americanos. Nossos cofres estão vazios. Ninguém mais paga impostos. O OFICIAL DE JUSTIÇA – É o que é preciso apurar. O país inteiro está rico e logo Güllen, com a Fundição Sol Nascente, vai à falência. O BURGOMESTRE – Também para nós é um mistério econômico. CIDADÃO I – Tudo tramóia da maçonaria. CIDADÃO II – Maquinação dos judeus. CIDADÃO III – A alta finança está metida nisso. CIDADÃO IV – O comunismo internacional manobra nos bastidores. (Toque de sineta.). O OFICIAL DE JUSTIÇA – Eu tenho olhos de gavião. Sempre acho alguma coisa. Vou revistar os cofres municipais. (Sai.). O BURGOMESTRE – É melhor que ele nos assalte agora do que depois da visita da milionária. (O Pintor terminou a faixa.). SCHILL – Isso, naturalmente, não vai, Burgomestre. É íntimo demais. “Bem-vinda Claire Zahanassian” é que deve ser. CIDADÃO I - Mas ela sempre foi Clarinha. CIDADÃO II – Clarinha Waescher. CIDADÃO III – Nascida e crescida aqui. CIDADÃO IV – Seu pai era Mestre-de-obras. O PINTOR – É muito simples. Escrevo “Bem-vinda Claire Zahanassian” nas costas. Depois, quando a milionária estiver emocionada, sempre poderemos virar a faixa para o lado da frente. CIDADÃO II – O Financista Zurique-Hamburgo. (Novo trem rápido passa da direita para a esquerda.). CIDADÃO III – Sempre na hora exata. Poderia se acertar o relógio por ele. CIDADÃO IV – Pois sim, quem é que ainda tem relógio por aqui? O BURGOMESTRE – Meus senhores, a milionária é a nossa última esperança. O PÁROCO – Afora Deus. O PROFESSOR – Mas Deus não fornece dinheiro. O BURGOMESTRE – Você foi íntimo dela, Schill; tudo depende de você. O PÁROCO – Naquela ocasião, os dois se separaram. Chegou ao meu ouvido uma história um tanto confusa... Não tem nada para confessar ao seu Pároco? SCHILL – Éramos muito amigos – jovens e ardorosos... Afinal, meus senhores, há quarenta e cinco anos, eu era um rapagão e ela, Clara... Parece-me que ainda a estou vendo vir ao meu encontro, luminosa no escuro do palheiro de Peter; ou correndo de pés nus sobre o musgo e as folhas da floresta da Fonte Imperial, o cabelo ruivo solto ao vento, ligeira, esguia, delicada, um diabo de bruxinha bonita. Foi a vida quem nos separou, somente a vida. Coisas que acontecem. O BURGOMESTRE – Para o meu pequeno discurso no banquete do Apóstolo de Ouro, eu precisaria de alguns pormenores a respeito da senhora Zahanassian. (Saca do bolso um caderninho de apontamentos.). O PROFESSOR – Andei pesquisando os velhos boletins escolares. As notas de Clara Waescher - sinto muito - mas, infelizmente, são más. O comportamento, também. Somente em botânica e zoologia, nota sofrível. O BURGOMESTRE (Tomando nota) – Bem. Sofrível em botânica e zoologia. Já é alguma coisa. SCHILL – Nisso, eu posso ser de auxílio ao Burgomestre. Clara amava a justiça. Positivamente. Certa vez, quando prenderam um vagabundo, ela atirou pedras contra a polícia. O BURGOMESTRE – Amor pela justiça. Nada mal. Produz sempre um grande efeito. Mas é melhor suprimir a história das pedras contra a polícia. SCHILL – Caridosa também era. Repartia tudo o que tinha; uma vez roubou batatas para dar a uma pobre viúva. O BURGOMESTRE – Pendor para a beneficência. É absolutamente necessário que eu cite isso, meus senhores. É o principal. Alguém se lembra de algum prédio que o pai dela teria construído? Viria a calhar no discurso. TODOS – Ninguém. (O Burgomestre fecha seu caderninho de apontamentos.). O BURGOMESTRE – Pelo que me diz respeito, eu estaria pronto... O resto é tarefa de Schill. SCHILL – Eu sei. A Zahanassian tem de soltar alguns dos seus milhões. O BURGOMESTRE – Alguns milhões – esse é o verdadeiro conceito. O PROFESSOR – Isso de creche, no nosso caso, não adianta nada. O BURGOMESTRE – Meu caro Schill, desde muito você é a personalidade mais querida de Güllen. Na primavera, termina o meu mandato e já estabeleci contatos com a oposição. Ficamos de acordo em propor você para meu sucessor. SCHILL – Mas, Senhor Burgomestre... O PROFESSOR – É a pura verdade. SCHILL – Meus senhores: vamos ao que importa. Antes de mais nada, quero falar com Clara sobre a nossa miserável situação. O PÁROCO – Mas com cuidado, delicadamente... SCHILL – Precisamos proceder habilmente sem erros de psicologia. Já um fracasso na recepção, à chegada, poderia mandar tudo por água abaixo. Banda de música e coro misto não resolvem nada. O BURGOMESTRE – Nisso, Schill tem razão. Afinal, esse momento também é muito importante: a senhora Zahanassian, que pisa o solo de sua cidade natal, sente-se novamente na sua casa, emocionada, com lágrimas nos olhos, torna a ver velhos conhecidos. Eu, naturalmente, não estarei aqui em mangas de camisa, como agora, mas, sim, solenemente, de fraque e cartola, tendo ao lado minha esposa e, na frente, as minhas duas netas, todas de branco, oferecendo rosas. Deus queira que tudo fique pronto a tempo. (Toque de sineta.). CIDADÃO I – O Rolando Furioso. CIDADÃO II – Veneza-Estocolmo, onze horas e vinte e sete. O PÁROCO – Onze horas e vinte e sete! Ainda temos quase duas horas para pôr a roupa dos domingos. O BURGOMESTRE – Para segurar no alto a faixa “Bem-vinda Claire Zahanassian”, escalo Kühn e Hauser. (Aponta para o Cidadão IV.) Os outros, é melhor que fiquem agitando o chapéu. Mas, por favor, nada de berreiro, como no ano passado, quando veio a Comissão do Governo; não causou a menor impressão e até hoje ainda esperamos pela subvenção. O apropriado não é uma alegria espalhafatosa, mas, sim, uma alegria contida, quase com soluços na voz, que expresse o sentimento da cidade pelo regresso da sua filha. Mostrem-se desenvoltos e cordiais, mas que a organização saia perfeita, pelo amor de Deus, o sino tem de entrar logo depois do coro misto. E, principalmente, é preciso muita atenção em que... (O estrondo do trem que se aproxima cobre o resto de suas palavras. Ranger de freios. O espanto e a confusão pintam-se no rosto de todos. Os cinco do banco levantam-se num pulo.). O PINTOR – O rápido! CIDADÃO I – Parou! CIDADÃO II – Em Güllen! CIDADÃO III – No lugarejo mais miserável. CIDADÃO IV – Mais imundo. CIDADÃO I – Mais desgraçado da linha Veneza-Estocolmo. O CHEFE DA ESTAÇÃO – Foram revogadas as leis da natureza. O Orlando Furioso tem de surgir na curva de Leuthenau, passar como um raio pela estação e desaparecer, um ponto negro, na baixada de Pückenried. (Da direita, chega Claire Zahanassian, sessenta e três anos, cabelo ruivo, colar de pérolas, enormes braceletes de ouro, enfeitadíssima, incrível, mas, apesar disto e por isto mesmo, grande dama, com um donaire peculiar, não obstante todo o seu grotesco. Atrás dela, o seu séquito, o Mordomo, Boby, beirando os oitenta anos de idade, de óculos pretos, o marido número 7 – alto, magro, bigode preto, com equipamento completo para a pesca. Um Chefe de Trem - agitadíssimo, de quepe vermelho e bolsa vermelha - acompanha o grupo.). CLAIRE ZAHANASSIAN – É aqui Güllen? O CHEFE DO TREM – A senhora puxou o freio de emergência, madame! CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu sempre puxo o freio de emergência. O CHEFE DO TREM – Protesto, energicamente. Em nosso país, nunca se puxa o freio de emergência. Nem mesmo em caso de emergência. O princípio fundamental é respeitar o horário. Exijo uma explicação. CLAIRE ZAHANASSIAN – Estamos em Güllen, sim, Moby. Reconheço o triste lugarejo. Lá embaixo, a floresta da Fonte Imperial, com o riacho, onde você poderá pescar trutas e lúcios, e, à direita, o telhado do palheiro de Peter. SCHILL (Como que despertando) – Clara. O PROFESSOR – A Zahanassian. TODOS - A Zahanassian. O PROFESSOR – O coro misto e o grupo juvenil que não estão prontos! O BURGOMESTRE – Os ginastas da pirâmide, o corpo de bombeiros! O PÁROCO – O Sacristão! O BURGOMESTRE – E eu sem fraque, meu Deus do céu! Sem cartolas, sem netas! CIDADÃO I – A Clarinha Waescher! A Clarinha Waescher! (Sai correndo na direção da vila.). O BURGOMESTRE (Gritando atrás dele) – Não esqueça a minha patroa! O CHEFE DO TREM – Estou à espera da explicação. No exercício das minhas funções. Em nome da direção da estrada de ferro. CLAIRE ZAHANASSIAN – O senhor é um cretino. Eu quero, justamente, é visitar a vila. Devia pular do seu rápido andando? O CHEFE DO TREM – A senhora fez parar o Rolando Furioso só porque desejava visitar Güllen? (Faz um esforço tremendo para se conter.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Naturalmente. O CHEFE DO TREM – Madame, se a sua intenção é visitar Güllen, pois não, a senhora tem em Kalberstadt o expressinho das doze horas e quarenta à sua disposição. Como todo mundo. Chegada a Güllen, à uma hora e treze. CLAIRE ZAHANASSIAN – O trem que pára em Loken, Brunnhübel, Beisenbach e Leuthenau? E o senhor pretendia que eu me deixasse rebocar, durante meia hora, por essas aldeotas todas? O CHEFE DO TREM – Isso vai lhe custar caro, madame. CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby, dê-lhe mil. TODOS (Murmurando) – Mil. (O Mordomo dá mil ao Chefe do Trem.). O CHEFE DO TREM (Assombrado) – Madame. CLAIRE ZAHANASSIAN – E mais três mil para a Sociedade Beneficente das Viúvas dos Ferroviários. TODOS (Murmurando) – Três mil. (O Chefe do Trem recebe mais três mil do Mordomo.). O CHEFE DO TREM (Confuso) – Essa sociedade não existe, madame. CLAIRE ZAHANASSIAN – Trate de fundá-la. (O Burgomestre diz qualquer coisa ao ouvido do Chefe do Trem.). O CHEFE DO TREM (Impressionadíssimo) – Madame: é a Senhora Claire Zahanassian? Oh, desculpe. Isso, naturalmente, muda tudo. É evidente que o trem iria parar em Güllen, se tivéssemos a menor idéia de que... Aqui está o seu dinheiro de volta, madame... Quatro mil... Meu Deus. TODOS (Murmurando) – Quatro mil. CLAIRE ZAHANASSIAN – Guarde essa ninharia. TODOS (Murmurando) – Ninharia. O CHEFE DO TREM – Deseja que o Rolando Furioso espere até a senhora ter visitado Güllen, madame? A direção da estrada de ferro terá imenso prazer em atendê-la. Parece que o portal da catedral é importante: gótico. Com um Juízo Final. CLAIRE ZAHANASSIAN – Vá saindo daqui na disparada e mais o seu trem. MARIDO NÚMERO 7 (Em tom lamuriento) – Mas a imprensa, benzinho, a imprensa ainda não desceu. Os jornalistas estão almoçando no carro-restaurante, lá na frente, sem saber de nada. CLAIRE ZAHANASSIAN – Deixe que continuem almoçando, Moby. No momento, não preciso da imprensa, em Güllen; mais tarde, ela virá sozinha. (Nesse meio tempo, o Cidadão I trouxe o fraque do Burgomestre. Este avança solenemente ao encontro de Claire Zahanassian. O Pintor e o Cidadão IV, em pé, no banco, içam a faixa com os dizeres “Bem-vinda Claire Zahanassian”. O Pintor não teve tempo de acabá-la. O Chefe da Estação dá o sinal para o trem partir.). O CHEFE DO TREM – Contanto que a senhora não vá se queixar à direção da estrada de ferro. Foi unicamente um mal-entendido. (O trem começa a pôr-se em movimento. O Chefe do Trem pula para ele.). O BURGOMESTRE – Ilustre e prezada senhora. Na qualidade de Burgomestre de Güllen, tenho a honra de apresentar à senhora, como filha que é da nossa cidade... (O resto do discurso do Burgomestre, que continua falando ininterruptamente, é inteiramente encoberto pela barulheira do trem partindo em grande velocidade.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu lhe agradeço, Senhor Burgomestre, o seu bonito discurso. (Vai à direção de Schill, que, um pouco acanhado, foi ao seu encontro.). SCHILL – Clara. CLAIRE ZAHANASSIAN – Alfredo. SCHILL – Que bom que você veio. CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu sempre tive esta intenção. Durante minha vida toda, desde o dia em que deixei Güllen. SCHILL (Não muito seguro de si) – É muito amável da sua parte. CLAIRE ZAHANASSIAN – Você também pensou em mim? SCHILL – Naturalmente. Sempre. Isso você sabe, Clara. CLAIRE ZAHANASSIAN – Foram maravilhosos todos aqueles dias que passamos juntos. SCHILL (Ufano) – Justamente. (Ao Professor.) Ouviu Professor? Está no papo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Chame-me como você sempre me chamou. SCHILL – Meu gatinho-do-mato. CLAIRE ZAHANASSIAN (Ronronando como um velho gato) – E que mais? SCHILL – Minha bruxinha. CLAIRE ZAHANASSIAN – E você era para mim a minha pantera negra. SCHILL – Ainda sou. CLAIRE ZAHANASSIAN – Bobagem. Você engordou. Criou cabelo grisalho e cara de pau d’água. SCHILL – Mas você não mudou minha bruxinha. CLAIRE ZAHANASSIAN – Qual nada. Eu também fiquei velha e gorda. E a minha perna esquerda lá se foi. Um acidente de automóvel. Agora, viajo somente nos três rápidos. Mas esta perna mecânica é perfeita, não acha? (Levanta a saia e mostra a perna esquerda.) Posso movê-la sem a menor dificuldade. SCHILL (Enxugando o suor) – Isso eu nunca teria pensado, meu gatinho-do-mato. CLAIRE ZAHANASSIAN – Você dá licença, Alfredo, de que lhe apresente o meu sétimo marido? É proprietário de plantações de fumo. O nosso casamento é feliz. SCHILL – Com prazer. CLAIRE ZAHANASSIAN – Chegue aqui, Moby, cumprimente. Para dizer a verdade, ele se chama Pablo, mas eu acho Moby mais bonito. Também combina melhor com Boby, que é o nome do meu camareiro. Afinal de contas, camareiro a gente tem para a vida toda, logo, os maridos é que devem adaptar-se ao nome dele. (O Marido Número 7 cumprimenta inclinando-se.) Não é um amor, com seu bigode preto? Concentre-se, Moby. (O Marido Número 7 concentra-se.) Mais. (O Marido Número 7 concentra-se ainda mais.) Ainda mais. MARIDO NÚMERO 7 – Mais do que isto, não posso concentrar-me, benzinho. Seriamente. CLAIRE ZAHANASSIAN – É claro que pode. Experimente. (O Marido Número 7 concentra-se ainda mais. Toque de sineta.) Viu que podia? Não é verdade, Alfredo, que assim ele dá uma impressão quase diabólica? Como um brasileiro. Mas é engano. É grego ortodoxo. O pai dele era russo. Fomos casados por um Pope. Não é interessante? Agora, quero ver um pouco de Güllen. (Com um lornhão cravejado de pedras preciosas, contempla a casinhola.) Quem construiu essa casa das privadas foi meu pai, Moby. Trabalho caprichado, rigorosamente de acordo com as especificações. Quando era criança, eu ficava horas, sentada no telhado, cuspindo para baixo. Mas só nos homens. (Ao fundo, reuniram-se o coro misto e o grupo juvenil. O Professor avança de cartola.). O PROFESSOR – Minha senhora, como Diretor do Ginásio de Güllen e cultor da nobre arte da música, peço licença para lhe prestar homenagem com uma singela canção folclórica, executada pelo coro misto e pelo grupo juvenil. CLAIRE ZAHANASSIAN – Está bem, Professor, vamos lá com a sua singela canção folclórica. (O Professor saca do bolso um diapasão, dá o tom, o coro misto e o grupo juvenil começam solenemente a cantar, mas, nesse momento, um novo trem chega da esquerda. O Chefe da Estação faz continência. O coro tem de lutar com o estrondear do trem, o Professor se desespera, finalmente o trem passou.). O BURGOMESTRE (Inconsolável) – O sino de tocar a rebate! Agora é que o sino deve repicar! CLAIRE ZAHANASSIAN – Cantaram bem, jovens de Güllen. Especialmente o louro com a voz de baixo, o último da esquerda, com o gogó saliente, esteve notável. (Um polícia abre caminho por entre o coro misto, fazendo continência diante de Claire Zahanassian.). O POLÍCIA – Cabo da Polícia Hahncke, minha senhora. Às suas ordens. CLAIRE ZAHANASSIAN – Obrigada. Não quero prender ninguém. Mas Güllen, talvez, ainda venha a precisar de seus serviços. Não lhe acontece, de vez em quando, fechar os olhos a alguma coisa? O POLÍCIA – Acontece, sim, senhora. Que seria de mim, em Güllen, se não os fechasse? CLAIRE ZAHANASSIAN – No futuro, será melhor guardá-los fechados. (O Polícia fica um tanto perplexo.). SCHILL (Rindo) – Isso é cem por cento Clara! Cem por cento a minha bruxinha! (Bate, divertido, uma palmada na coxa. O Burgomestre põe na cabeça a cartola do Professor, coloca à sua frente as duas netas. Gêmeas, sete anos de idade, trancinhas louras.). O BURGOMESTRE – Minhas netas, Guilhermina e Adolfina. Só falta a patroa. (Enxuga o suor. As duas meninas fazem uma reverência e entregam à Zahanassian ramos de rosas vermelhas.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Parabéns pelas duas gurias, Burgomestre. Segure! (Soca as rosas nos braços do Chefe da Estação. O Burgomestre, às escondidas, passa a cartola ao Pároco, que a põe.). O BURGOMESTRE – Minha senhora, o nosso Pároco. (O Pároco tira a cartola, inclina-se.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Ah, o pastor. O senhor costuma consolar os moribundos? O PÁROCO (Admirado) – Faço o que posso. CLAIRE ZAHANASSIAN – Também os condenados à morte? O PÁROCO (Confuso) – Em nosso país, a pena de morte foi abolida, minha senhora. CLAIRE ZAHANASSIAN – Pode ser que tornem a introduzi-la. (Um tanto desnorteado, o Pároco devolve a cartola ao Burgomestre, que volta a pô-la.). SCHILL (Sorrindo) – Meu gatinho-do-mato! Você tem cada piada mais engraçada! CLAIRE ZAHANASSIAN – Agora quero ver a vila. (O Burgomestre quer oferecer-lhe o braço.) Mas que idéia, Burgomestre; eu não vou andar quilômetros a pé, com a minha perna mecânica. O BURGOMESTRE (Assustado) – Pois não! Imediatamente! O médico tem um automóvel. Um Mercedes de 1932. O POLÍCIA (Batendo os calcanhares) – Deixe por minha conta, Senhor Burgomestre. Vou já requisitar o carro. CLAIRE ZAHANASSIAN – Não é preciso. Desde o meu acidente de automóvel, só ando de cadeirinha. Roby e Toby: vamos com isso. (Da esquerda, chegam dois monstros hercúleos, mascando chicletes e carregando uma liteira. Um deles traz às costas uma guitarra.) Dois Gângsteres de Manhattan, condenados à cadeira elétrica em Sing-Sing. Libertados, a meu pedido, para o serviço de carregar liteira. Cada um deles me custou um milhão de dólares. A liteira vem do Louvre e é um presente do Presidente da República francesa. Um cavalheiro muito amável, igualzinho aos seus retratos nos jornais. Roby e Toby: levem-me à cidade. OS DOIS – Yes, Madam. CLAIRE ZAHANASSIAN – Mas, antes, ao palheiro de Peter, e, depois, à floresta da Fonte Imperial. Quero visitar, com Alfredo, os velhos lugares do nosso amor. Enquanto isso: mandem levar ao Apóstolo de Ouro a bagagem e o caixão de defunto. O BURGOMESTRE (Pasmado) – O caixão de defunto? CLAIRE ZAHANASSIAN – Trouxe um comigo. Talvez eu vá precisar dele. Roby e Toby: marchem! (Os dois monstros mascadores de chicletes carregam Claire Zahanassian, na liteira, para a cidade. O Burgomestre faz um sinal, todos rompem em gritos de viva, que, no entanto, se extinguem de pasmo quando dois carregadores passam levando para Güllen um riquíssimo ataúde. Nesse momento, todavia, entra a bimbalhar o sino de tocar a rebate, que ainda não está no prego.). O BURGOMESTRE – Até que enfim! O sino de tocar a rebate! (A população acompanha o ataúde. Seguem-se as camareiras de Claire Zahanassian, com a bagagem, e uma quantidade infinita de maletas e malas, carregadas por habitantes de Güllen. O Polícia comanda o trânsito e se prepara para juntar-se ao cortejo, quando chegam, da direita, outros dois homens, pequenos, gordos, velhos, falando em voz baixa e vestidos com esmero, que se seguram pela mão.). OS DOIS – Estamos em Güllen. Sentimos isso ao cheiro, ao cheiro, ao cheiro do ar, cheiro do ar de Güllen. O POLÍCIA – E vocês, quem são? OS DOIS – Pertencemos à velha senhora, pertencemos à velha senhora. Ela nos chama Koby e Loby. O POLÍCIA – A senhora Zahanassian está hospedada no Hotel do Apóstolo de Ouro. OS DOIS (Alegremente) – Somos cegos, somos cegos. O POLÍCIA – Cegos? Então, vou levá-los até lá. OS DOIS – Obrigado, Senhor Polícia, muito obrigado. O POLÍCIA (Admirado) – Se são cegos, como sabem que eu sou polícia? OS DOIS – Pelo tom de voz, pelo tom de voz, todos os policiais têm o mesmo tom de voz. O POLÍCIA (Desconfiado) – Está me parecendo que os dois já tiveram alguma experiência com a polícia. Que espécie de homens são vocês? OS DOIS (Surpresos) – Homens, ele pensa que somos homens! O POLÍCIA – Que diabo são então? OS DOIS – Vai descobrir mais tarde, vai descobrir mais tarde. O POLÍCIA (Pasmado) – Bem, ao menos são alegres. OS DOIS – Somos tratados a filé a presunto. Todos os dias, todos os dias. O POLÍCIA – Assim, eu também saía dançando por aí. Vamos: dêem cá a mão. Esses estrangeiros têm um humorismo esquisito. (Ruma com os dois para a cidade.). OS DOIS – Vamos ter com Boby e Moby, vamos ter com Roby e Toby. (Mudança de cena sem que baixe o pano. A fachada da estação e a casinhola desaparecem no alto. O interior do Apóstolo de Ouro; pode-se mesmo fazer descer uma tabuleta de hospedaria, uma venerável figura dourada de apóstolo, emblema que fica suspenso no meio da sala. Vestígios de antigo luxo que acabou. Tudo gasto, coberto de pó, em pedaços, cheirando mal, os estuques se esboroando. Uma interminável procissão de gente carregando bagagem; primeiro, arrastam para dentro e levam lá para cima uma jaula, depois, as malas. O Burgomestre e o Professor estão sentados na direita baixa, tomando umas aguardentes.). O BURGOMESTRE – Malas e mais malas, aos montes. E, ainda há pouco, levaram para cima uma pantera numa jaula, um bicharoco preto de meter medo. O PROFESSOR – Ela reservou um quarto especial só para o caixão de defunto. Curioso. O BURGOMESTRE – Essas mulheres mundialmente faladas têm suas excentricidades. O PROFESSOR – Pelo modo, tenciona demorar-se. O BURGOMESTRE – Tanto melhor. Schill faz dela o que quer. Chamou-lhe gatinho-do-mato, bruxinha. Vai fazê-la cuspir milhões. À saúde de Claire Zahanassian, Professor. Possa ela sanear as finanças de Bockmann. O PROFESSOR – As indústrias Wagner. O BURGOMESTRE – A Fundição Sol Nascente. Se essa tornar a prosperar, tudo tornará a prosperar: o município, o ginásio, o bem-estar da coletividade. (Tocam os copos.). O PROFESSOR – Faz mais de quatro lustros que eu corrijo os deveres de grego e latim dos alunos de Güllen, meu caro Senhor Burgomestre, mas somente há uma hora é que sei o que é o pavor. De arrepiar o cabelo, a figura da velha senhora descendo do trem, toda vestida de preto. Fico pensando numa parca, numa deusa grega do destino. Deveria chamar-se Cloto, em vez de Claire. Dessa, sim, eu acreditaria que é capaz de fiar os fios da vida. (O Polícia entra, pendura o quepe num gancho.). O BURGOMESTRE – Venha sentar-se com a gente, cabo Hahncke. (O Polícia vai sentar-se com eles.). O POLÍCIA – Não é nada divertido atuar neste lugarejo. Mas, agora, vai haver flores brotando das ruínas. Ainda há pouco, estive com a milionária e o merceeiro Schill no palheiro de Peter. Uma cena tocante. Ambos mergulhados em profundo recolhimento, como numa igreja. Por sinal que me senti vexado de estar lá. Também, assim que foram para a floresta da Fonte Imperial, vim embora. Uma verdadeira procissão. Na frente, a liteira, ao lado, Schill e, atrás, o Mordomo e o Sétimo Marido, com seu caniço de pesca. O PROFESSOR – Que consumo de homens! Uma nova Laís. O POLÍCIA – E, ainda por cima, dois homenzinhos gordos. Sabe o diabo o que isso quer dizer. O PROFESSOR – Coisa sinistra. Surgida das profundezas do Averno. O BURGOMESTRE – Gostaria de saber o que eles foram procurar na floresta da Fonte Imperial. O POLÍCIA – O mesmo que no palheiro de Peter. Estão percorrendo os sítios onde outrora a sua paixão – como é mesmo que se diz? – flamejou. O PROFESSOR – Como uma labareda! É forçoso pensar em Shakespeare. Romeu e Julieta. Meus senhores: estou profundamente emocionado. Pela primeira vez, sinto pairar em Güllen a grandeza da antiguidade. O BURGOMESTRE – Principalmente, porém, precisamos brindar ao ótimo Schill, que está fazendo o impossível para melhorar a nossa sorte. Meus senhores: bebo à saúde do mais querido cidadão de Güllen, do meu sucessor! (O Apóstolo da tabuleta voa para o urdimento. Da esquerda, chegam os quatro cidadãos, trazendo um simples banco de madeira, sem encosto, que pousam à esquerda. O Cidadão I fica em pé, no banco, segurando um grande coração de papelão emoldurado pelas letras A e C, os demais formam semicírculo ao seu redor, estendendo ramos, num arremedo de árvores.). CIDADÃO I – Somos pinheiros, bétulas, faias. CIDADÃO II – Somos abetos verde-montanha. CIDADÃO III – Liquens e musgos, moitas de hera. CIDADÃO IV – Brenha e capão, covis de raposa. CIDADÃO I – Nuvens que correm; cantos de pássaros. CIDADÃO II – Fresca e cheirosa selva alemã. CIDADÃO III – E cogumelos, gamos ariscos. CIDADÃO IV – Brisa nos galhos e velhos sonhos. (Do fundo, chegam os dois monstros mascadores de chiclete, trazendo a liteira com Claire Zahanassian; ao lado desta, Schill. Atrás, o Marido Número 7 e, bem ao fundo, o Mordomo, conduzindo pela mão os dois cegos.). CLAIRE ZAHANASSIAN – A floresta da Fonte Imperial. Roby e Toby: parem. OS DOIS CEGOS – Parem Roby e Toby, parem Boby e Moby. (Claire Zahanassian desce da cadeirinha e contempla a floresta.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O coração com as nossas iniciais: Alfredo. Quase apagadas e afastadas uma da outra. A árvore cresceu, seu caule e seus galhos engrossaram, tal como nós. (Claire Zahanassian aproxima-se das outras árvores.) Um grupo de árvores bem alemãs. Há muito que eu não percorria a floresta da minha mocidade, há muito que não pisava o chão fofo de folhas, a hera cor de violeta. Vão passear um pouco atrás das moitas, com sua liteira, ó mascadores de goma; não gosto de ter suas carrancas sempre debaixo dos olhos. E você, Moby, veja se espairece à direita, para as bandas do riacho; visite seus peixes. (Os dois monstros com a leiteira saem à esquerda, e o Marido Número 7, à direita. Claire Zahanassian senta-se no banco.) Olha só: um gamo. (O Cidadão III sai, num pulo.). SCHILL – A caça é proibida; tempo da gestação. CLAIRE ZAHANASSIAN – Trocamos beijos sentados nesta pedra. Há mais de quarenta e cinco anos. E nos amamos atrás desses arbustos, debaixo dessa faia, por entre os cogumelos venenosos, no musgo. Eu tinha dezessete anos e você não chegava aos vinte. Depois, você se casou com Matilde Blumhard e seu armazém e eu com o velho Zahanassian e seus milhões da Armênia. Ele me encontrou num bordel de Hamburgo. Ficou todo embeiçado pelo meu cabelo ruivo, a minha boa e velha joaninha de ouro! SCHILL – Clara! CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: um Henry Clay. OS DOIS CEGOS – Um Henry Clay, um Henry Clay. (O Mordomo vem do fundo, oferece-lhe um charuto, dá-lhe fogo.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu gosto de charutos. O justo seria que fumasse os que são feitos com fumo do meu marido, mas não me inspiram nenhuma confiança. SCHILL – Casei-me com Matilde Blumhard por amor de você. CLAIRE ZAHANASSIAN – Ela tinha dinheiro. SCHILL – Você era jovem e bonita. O futuro lhe pertencia. Eu queria a sua felicidade. Tive que renunciar à minha. CLAIRE ZAHANASSIAN – E, agora, o futuro chegou. SCHILL – Tivesse ficado aqui, você estaria na miséria, como eu. CLAIRE ZAHANASSIAN – Você está na miséria? SCHILL – Um merceeiro falido numa cidadezinha falida. CLAIRE ZAHANASSIAN – Agora, quem tem dinheiro sou eu. SCHILL – Eu vivo num inferno, desde o dia em que você foi embora. CLAIRE ZAHANASSIAN – E eu me tornei o inferno. SCHILL – Tenho que brigar com a minha família, que - todos os dias - me lança no rosto a nossa pobreza. CLAIRE ZAHANASSIAN – A Matildinha não fez você feliz? SCHILL – O essencial é que você seja feliz. CLAIRE ZAHANASSIAN – E seus filhos? SCHILL – Sem o menor idealismo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Isso - com o tempo - virá a eles também. (Ele emudece. Ambos fitam a floresta da sua juventude.). SCHILL – Eu levo uma vida ridícula. Nem sequer, a bem dizer, saí da vila. Uma viagem a Berlim e outra ao Lago de Lugano: é tudo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Também, para quê? Eu conheço o mundo. SCHILL – Porque você teve sempre a possibilidade de viajar. CLAIRE ZAHANASSIAN – Porque ele me pertence. (Ele emudece e ela fuma.). SCHILL – Agora, vai mudar tudo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Certamente. SCHILL (Ansiosamente) – Você vai nos ajudar? CLAIRE ZAHANASSIAN – Não posso abandonar a cidade da minha juventude. SCHILL – Precisamos de milhões. CLAIRE ZAHANASSIAN – É pouco. SCHILL – Meu gatinho-do-mato! (Comovido, dá-lhe uma palmada na coxa esquerda e retira a mão, com uma careta de dor.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Isso dói. Você bateu num parafuso da minha perna mecânica. (O Cidadão I tira do bolso da calça um cachimbo e uma chave de casa, enferrujada, bate com a chave no cachimbo.) Um pica-pau. SCHILL – É como antigamente, quando éramos jovens e ardorosos e vínhamos passear na floresta da Fonte Imperial, nos dias do nosso amor. O sol alto sobre os abetos, um disco luminoso. Nuvens correndo no céu e o canto do cuco, num ponto qualquer da mata. CIDADÃO IV – Cuco! Cuco! (Schill apalpa o Cidadão I.). SCHILL – Fresca madeira e vento nos ramos, o murmúrio da folhagem como o marulhar das ondas do mar. Como antigamente, tudo como antigamente. (Os três cidadãos que fingem de árvores sopram ar pela boca e movem os braços para cima e para baixo.) Tivesse o tempo parado, minha bruxinha. Pudesse a vida não nos ter dividido. CLAIRE ZAHANASSIAN – É isso que você deseja? SCHILL – Sim, isso, só isso. Porque eu amo você. (Beija-lhe a mão direita.) A mesma mão, branca e fresca. CLAIRE ZAHANASSIAN – Engano. Também é mecânica. De marfim. (Schill larga a mão, horrorizado.). SCHILL – Clara: será que você tem tudo mecânico? CLAIRE ZAHANASSIAN – Quase. Foi uma queda de avião no Afeganistão. Saí rastejando do meio dos destroços, única sobrevivente. A tripulação também estava morta. De mim, ninguém dá cabo. OS DOIS CEGOS – Ninguém dá cabo, ninguém dá cabo. (Um enérgico dobrado da banda de música. O Apóstolo da tabuleta torna a descer. O güllenses trazem para dentro mesas, as toalhas de mesa esfarrapadas de causar lástima. Pratos, talheres, comidas, uma mesa no meio, uma à esquerda e outra à direita, paralelas ao público. Do fundo, chega o Pároco. Entram numerosos outros habitantes de Güllen, um deles vestindo camisa de malha de ginasta. Tornam a aparecer o Burgomestre, o Professor e o Polícia. Aplausos dos güllenses. O Burgomestre aproxima-se do banco onde estão sentados Claire Zahanassian e Schill; as árvores voltaram a ser cidadãos e foram para o fundo.). O BURGOMESTRE – Estes aplausos entusiásticos são para a senhora, ilustre hóspede. CLAIRE ZAHANASSIAN – São para a banda de música, Burgomestre. Tocou primorosamente e, pouco antes, a pirâmide do Grêmio Ginástico foi uma maravilha. Gosto de homens com camisa de malha e calção. Têm um aspecto tão mais natural. O BURGOMESTRE – Dá-me licença de acompanhá-la à mesa? (Conduz Claire Zahanassian à mesa do meio, apresenta-lhe sua esposa.) Minha esposa. (Claire Zahanassian examina a esposa com seu lornhão.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Anete Dummermuth, a primeira da nossa classe. (Agora o Burgomestre apresenta-lhe uma segunda mulher, não menos acabada e amargurada que a dele.). O BURGOMESTRE – A senhora Schill. CLAIRE ZAHANASSIAN – Matildinha Blumhard. Ainda me lembro de você, quando ficava à espreita de Alfredo, escondida atrás da porta do armazém. Você emagreceu e empalideceu um bocado, minha filha. (Da direita, entra correndo na sala o Médico, um cinqüentão atarracado, de bigode, cabelo preto e cerdoso, na cara as cicatrizes dos duelos estudantis; traja uma velha casaca.). O MÉDICO – Vim chispando nos meu velho Mercedes, para chegar a tempo. O BURGOMESTRE – O Doutor Nüsslin, Médico municipal. (Claire Zahanassian observa o Médico com seu lornhão; o Médico beija-lhe a mão.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Interessante. É o senhor que passa os atestados de óbito? O MÉDICO (Pasmado) – Os atestados de óbito? CLAIRE ZAHANASSIAN – Sim, quando morre alguém. O MÉDICO – Com efeito, minha senhora. É o meu dever. Função inerente ao cargo. CLAIRE ZAHANASSIAN – No futuro, ateste colapso cardíaco. SCHILL (Rindo) – Boa piada, que delícia! (Claire Zahanassian afasta-se do Médico e examina o Ginasta na sua camisa de malha.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Faça mais alguns exercícios. (O Ginasta dobra os joelhos, move os braços.) Que músculos! Com toda essa força, o senhor nunca estrangulou ninguém? O GINASTA (Na posição de flexão dos joelhos, assombrado) – Se estrangulei...? CLAIRE ZAHANASSIAN – Agora, estenda outra vez os braços para trás, senhor Ginasta, e depois, faça a parada de chão. SCHILL (Rindo) – A Clara é engraçadíssima! Tem cada uma de se morrer de rir. (O Médico ainda não se refez do seu pasmo.). O MÉDICO – Não sei! Essas pilhérias me provocam calafrios. SCHILL (Em voz baixa) – Ela nos prometeu milhões. (O Burgomestre ficou sem fôlego à notícia, respira profundamente.). O BURGOMESTRE – Milhões? SCHILL – Milhões. O MÉDICO – Caramba. (A milionária afasta-se do Ginasta.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Agora, Burgomestre, fiquei com fome. O BURGOMESTRE – Estamos apenas à espera de seu marido, minha senhora. CLAIRE ZAHANASSIAN – Não precisa esperar. Está pescando e eu vou me divorciar dele. O BURGOMESTRE – Divorciar? CLAIRE ZAHANASSIAN – Também para ele vai ser surpresa. É que me caso com um ator alemão de cinema. O BURGOMESTRE – Mas a senhora disse que o seu casamento era feliz! CLAIRE ZAHANASSIAN – Todos os meus casamentos são felizes. Mas o sonho da minha mocidade era casar-me na Catedral de Güllen. É preciso realizar os sonhos da mocidade. Vai ser uma cerimônia imponente. (Todos se sentam. Claire Zahanassian toma lugar entre o Burgomestre e Schill. Ao lado de Schill, a Senhora Schill e, ao lado do Burgomestre, a esposa deste. À direita, atrás de outra mesa, o Professor, o Pároco e o Polícia e, à esquerda, os quatro cidadãos. Outros convidados de honra, com as respectivas esposas, ao fundo, onde avulta a faixa com “Bem-vinda Clarinha”. O Burgomestre, radiante, já com o guardanapo atado atrás do pescoço, levanta-se e bate no copo.). O BURGOMESTRE – Minha senhora, meus caros concidadãos. Faz agora quarenta e cinco anos que a senhora deixou a nossa pequena cidade, a qual, fundada pelo Eleitor Hasso, o Generoso, se estende graciosamente entre a floresta da Fonte Imperial e a Baixada de Pückenried. Quarenta e cinco anos - nove lustros: um tempo enorme. Nesse ínterim, muitas coisas aconteceram, muitas coisas dolorosas. O mundo sofreu e nós com ele. Mas, ilustre hóspede, nós nunca esquecemos a senhora – a nossa Clarinha. (Aplausos.) Nem a senhora nem a sua família. Sua mãe, esplêndido exemplo da saúde da raça (Schill diz-lhe baixinho alguma coisa.), prematuramente vitimada, com pesar de todos, por uma tuberculose pulmonar, e seu pai, tão popular, a quem se deve, perto da Estação, uma construção que técnicos e leigos assiduamente visitam (Schill diz-lhe baixinho alguma coisa.) e muito apreciam - ambos ainda estão vivos na nossa memória, como os melhores e os mais beneméritos dentre nós. E quanto à senhora, quem não a conhecia, quando, louro diabrete (Schill diz-lhe baixinho alguma coisa), com suas trancinhas ruivas, fazia algazarra pelas nossas ruas, hoje, infelizmente, em petição de miséria? Já nesse tempo todos sentiam o encanto irresistível da sua personalidade e pressentiam a futura ascensão aos vertiginosos pináculos da sociedade. (Puxa do bolso o caderninho de apontamentos.) Sua figura permaneceu inesquecível. Com efeito. Ainda hoje, os seus trabalhos escolares são apontados aos alunos, como modelo, pelo corpo docente; especialmente, extraordinárias foram suas aptidões nas matérias mais importantes, botânica e zoologia, expressão do seu afeto por tudo o que precisa de proteção. Sem amor à justiça e o seu sentimento da caridade já, então, suscitavam a admiração de vastas camadas do nosso povo. (Grandes aclamações.) Para mencionar apenas um dos seus gestos caridosos, recordarei como a nossa Clarinha conseguiu comida para uma velha e pobre viúva, comprando batatas com o dinheiro duramente ganho com seu trabalho nas casas dos vizinhos e salvando-a, assim, de morrer de fome. (Aplausos estrondosos.) Minha senhora, meus caros concidadãos, a delicada semente de tão feliz disposição germinou vigorosa, a travessa garota de cacinhos ruivos tornou-se uma grande dama, que cumulou o mundo de benefícios; e basta pensar nas suas obras sociais, nas suas maternidades e distribuições de sopa aos pobres, nos seus fundos de auxílio aos artistas, nas suas creches. Por isso, peço que todos se unam a mim no grito de: Viva a nossa Clarinha, viva! (Vivas e aplausos. Claire Zahanassian levanta-se.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Burgomestre, cidadãos de Güllen. Essa desinteressada alegria pela minha visita me comove em extremo. Para dizer a verdade, eu fui uma menina um pouco diferente de como me pintou o discurso do Burgomestre, na escola levei muita pancada e, quanto às batatas para a viúva Boll, eu as roubei, junto com Schill, não para impedir que a velha rufiona morresse de fome, mas, sim, para poder, ao menos uma vez, dormir com Schill numa cama, onde era bem mais cômodo do que na floresta da Fonte Imperial ou no palheiro de Peter. A fim de contribuir, contudo, para a alegria geral, declaro desde já que estou pronta para doar a Güllen a quantia de um bilhão. Quinhentos milhões para a cidade e quinhentos milhões para serem distribuídos entre todas as suas famílias. (Silêncio mortal.). O BURGOMESTRE (Gaguejando) – Um bilhão. (Todos continuam assombrados.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Com uma condição. (Todos rompem em indescritíveis manifestações de júbilo. Dançam pela sala, trepam nas cadeiras, o Ginasta faz exercícios, etc. Schill, entusiasmado, bate os punhos no peito.). SCHILL – A nossa Clara! Estupenda! Formidável! Gozadíssima! Cem por cento a minha bruxinha. (Beija-a.). O BURGOMESTRE – A senhora disse: com uma condição. Posso saber qual é a condição? CLAIRE ZAHANASSIAN – Vou dizer a condição. Eu dou um bilhão à cidade e, com esse dinheiro, compro justiça para mim. O BURGOMESTRE – Em que sentido deve entender-se isso, minha senhora? CLAIRE ZAHANASSIAN – Ao pé da letra. O BURGOMESTRE – Mas justiça não é coisa que se possa comprar. CLAIRE ZAHANASSIAN – Pode-se comprar tudo. O BURGOMESTRE – Continuo não entendendo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Chegue à frente, Boby. (O Mordomo vem da direita para o meio da cena, entre as três mesas, e tira os óculos escuros.). O MORDOMO – Não sei se alguém ainda me reconhece? O PROFESSOR – O Juiz de Direito Hofer. O MORDOMO – Isso mesmo. O Juiz de Direito Hofer. Há quarenta e cinco anos, eu era Juiz de Direito em Güllen, de onde passei para o Tribunal de Justiça de Kassigen, até que a Senhora Zahanassian, já agora faz vinte e cinco anos, me fez a proposta de entrar para o seu serviço como mordomo. Aceitei. Uma carreira, talvez, um tanto estranha, para um magistrado, mas o ordenado da proposta era de tal modo fantástico... CLAIRE ZAHANASSIAN – Vamos ao que interessa Boby. O MORDOMO – Como acabaram de ouvir, a Senhora Claire Zahanassian oferece um bilhão em troca de justiça. Noutras palavras, a Senhora Claire Zahanassian oferece a importância de um bilhão, se for reparada a injustiça de que ela foi vítima em Güllen. Senhor Schill, por favor. (Schill levanta-se pálido, assustado e admirado do mesmo passo.). SCHILL – Que quer de mim? O MORDOMO – Chegue à frente, Senhor Schill. SCHILL – Pois não. (Vai colocar-se à frente da mesa da direita. Ri embaraçado. Dá de ombros.). O MORDOMO – Foi no ano de 19102. Eu era Juiz de Direito em Güllen e tive de julgar um caso de investigação de paternidade. Claire Zahanassian, naquele tempo Clara Waescher, acusava o senhor de ser o pai da criança que ela ia dar à luz, Senhor Schill. (Schill fica calado.) Naquela ocasião, o senhor contestou essa paternidade, Senhor Schill. O senhor trouxe duas testemunhas. SCHILL – Uma velha história. Eu era jovem e leviano. CLAIRE ZAHANASSIAN – Toby e Roby: tragam para frente Koby e Loby. (Os dois monstros mascadores de chiclete trazem para o meio da cena os dois eunucos, que se seguram alegremente pela mão.). OS DOIS – Estamos aqui, estamos aqui. O MORDOMO – Reconhece esses dois indivíduos, Senhor Schill? (Schill permanece calado.). OS DOIS – Somos Koby e Loby, somos Koby e Loby. SCHILL – Não os conheço. OS DOIS – Estamos mudados, estamos mudados. O MORDOMO – Digam seus nomes. KOBY – Jacó Hühnlein, Jacó Hühnlein. LOBY – Ludwig Sparr, Ludwig Sparr. O MORDOMO – E agora, Senhor Schill? SCHILL – Não sei quem sejam. O MORDOMO – Jacó Hühnlein e Ludwig Sparr: reconhecem o Senhor Schill? OS DOIS – Estamos cegos, estamos cegos. O MORDOMO – Não o reconhecem pela voz? OS DOIS – Pela voz, sim, pela voz, sim. O MORDOMO – Em 1910, eu era Juiz e vocês as testemunhas. Que foi que vocês juraram - Ludwig Sparr e Jacó Hühnlein - diante do Tribunal de Güllen? OS DOIS – Que tínhamos dormido com Clara, que tínhamos dormido com Clara. O MORDOMO – Foi isso o que juraram diante de mim. Diante do Tribunal. Diante de Deus. Era a verdade? OS DOIS – Juramos falso, juramos falso. O MORDOMO – Por quê: Ludwig Sparr e Jacó Hühnlein? OS DOIS – Schill nos pagou para isso, Schill nos pagou para isso. O MORDOMO – Com que foi que ele os pagou? OS DOIS – Com um litro de aguardente, com um litro de aguardente. CLAIRE ZAHANASSIAN – Agora contem o que foi que eu fiz com vocês. O MORDOMO – Contem. OS DOIS – Ela mandou nos procurar, ela mandou nos procurar. O MORDOMO – Exatamente. Claire Zahanassian mandou procurá-los. No mundo inteiro. Jacó Hühnlein tinha emigrado para o Canadá e Ludwig Sparr, para a Austrália. Mas ela os achou. Que fez ela então com vocês? OS DOIS – Entregou a Roby e Toby. Entregou a Roby e Toby. O MORDOMO – E que foi que Roby e Toby fizeram com vocês? OS DOIS – Caparam e cegaram, caparam e cegaram. O MORDOMO – A história é essa: um Juiz, um acusado, duas testemunhas falsas e um erro judiciário, no ano de 1910. Não é assim, queixosa? (Claire Zahanassian levanta-se.). CLAIRE ZAHANASSIAN – É assim. SCHILL (Batendo o pé no chão) – Prescreveu, prescreveu tudo há muito tempo! Uma velha história absurda! O MORDOMO – Que aconteceu com a criança, queixosa? CLAIRE ZAHANASSIAN (Em voz baixa) – Viveu somente durante um ano. O MORDOMO – E que aconteceu com a senhora? CLAIRE ZAHANASSIAN – Virei mulher da vida. O MORDOMO – Por que motivo? CLAIRE ZAHANASSIAN – É o que tinha feito de mim a sentença do Tribunal. O MORDOMO – E agora, Claire Zahanassian, a senhora quer justiça? CLAIRE ZAHANASSIAN – É um luxo que me posso dar. Um bilhão para Güllen, se alguém matar Alfredo Schill. (Silêncio mortal. A Senhora Schill corre para Schill e o aperta contra si.). A SENHORA SCHILL – Alfredo! SCHILL – Bruxinha: você não pode pedir isso! A vida continuou, passaram-se tantos anos! CLAIRE ZAHANASSIAN – A vida continuou, passaram-se tantos anos, mas eu não esqueci Schill. Nem a floresta da Fonte Imperial nem o palheiro de Peter nem o quarto de dormir da Viúva Boll e nem a sua traição. Agora, ambos estamos velhos, você todo encarquilhado, eu retalhada pela faca da cirurgia plástica, e agora quero acertar as nossas contas: você escolheu a sua vida e me forçou a aceitar a minha. Ainda há pouco, na floresta da nossa juventude, tão marcada pelo efêmero, você desejou que o tempo tivesse parado. Pois, agora eu o fiz recuar e agora quero justiça, justiça em troca de um bilhão. (O Burgomestre levanta-se, pálido, muito digno.). O BURGOMESTRE – Senhora Zahanassian! Nós ainda estamos na Europa, ainda não nos tornamos pagãos. Em nome da cidade de Güllen, recuso a sua oferta. Em nome da humanidade. Preferimos continuar pobres a nos manchar de sangue. (Aplausos estrondosos.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Está bem, eu espero. ATO II A vila. Apenas indicada. Ao fundo, o Hotel do Apóstolo de Ouro. Visto de fora. Fachada: em mau estado, Jugendstil3. Uma varanda. À direita, um letreiro: “Alfredo Schill, Armazém”. Por baixo, um sujo balcão de vendas e, atrás, uma prateleira com velhas mercadorias. Quando alguém transpõe a porta imaginária da loja, ouve-se um leve toque de campainha. À esquerda, outro letreiro: “Polícia”. Por baixo, uma mesa de madeira com um telefone. Duas cadeiras. De manhã, Roby e Toby, mascando chiclete, trazem da esquerda e levam para o Hotel, cruzando a cena, coroas e flores, como para um enterro. Schill os observa pela janela. Sua filha está ajoelhada, limpando o chão. Seu filho põe um cigarro na boca. SCHILL – Coroas. O FILHO – Todos os dias trazem da Estação. SCHILL – Para o caixão de defunto vazio do Apóstolo de Ouro. O FILHO – Não intimidam ninguém. SCHILL – A cidade está do meu lado. (O Filho acende o cigarro.). SCHILL – Sua mãe vai descer para o café com leite? A FILHA – Diz que fica lá em cima, que está cansada. SCHILL – Vocês têm uma boa mãe, meus filhos. Realmente. É preciso reconhecê-lo. Uma boa mãe. É melhor que fique lá em cima, que se poupe. Vamos nós três tomar o café juntos. Há muito que não o fazemos. Eu entro com uns ovos e uma lata de presunto americano. Vamos nos tratar regiamente. Como nos bons tempos, quando a Fundição Sol Nascente trabalhava a pleno rendimento. O FILHO – Você vai me dar licença, pai. (Apaga o cigarro.). SCHILL – Não quer comer com a gente, Walter? O FILHO – Vou até a Estação. Um dos trabalhadores está doente. Talvez precisem de substituto. SCHILL – Trabalho na Estação, sob o sol escaldante, não é emprego para meu filho. O FILHO – Melhor do que nada. (Vai-se embora. A Filha levanta-se.). A FILHA – Eu também vou, pai. SCHILL – Ah! Você também. E aonde vai, se posso fazer esta pergunta à minha ilustre filha? A FILHA – Ao Departamento de Empregos. Talvez haja alguma vaga. (A Filha vai-se embora. Schill está comovido, assua o nariz com o lenço.). SCHILL – Bons meninos, corajosos. (Da varanda, chegam alguns acordes de guitarra.). A VOZ DE CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: passe-me a minha perna esquerda. A VOZ DO MORDOMO – Não consigo encontrá-la, madame. A VOZ DE CLAIRE ZAHANASSIAN – Em cima do camiseiro, atrás das flores do noivado. (Chega o primeiro freguês, o Cidadão I, à loja de Schill.). SCHILL – Bom dia, Hofbauer. CIDADÃO I – Cigarros. SCHILL – Como todas as manhãs. CIDADÃO I – Esses, não. Áriston: ponta de cortiça. SCHILL – São mais caros. CIDADÃO I – Ponha na conta. SCHILL – Porque é você, Hofbauer, e porque precisamos de nos manter unidos. CIDADÃO I – Estão tocando guitarra. SCHILL – Um dos gângsteres de Sing-Sing. (Saindo do Hotel, vêm os dois cegos, trazendo caniços e outros apetrechos de pesca.). OS DOIS – Linda manhã, Alfredo, linda manhã. SCHILL – Vão para o diabo que os carregue. OS DOIS – Vamos pescar, vamos pescar. (Saem à esquerda.). CIDADÃO I – Estão indo para o riacho. SCHILL – Com os caniços de pesca do sétimo marido. CIDADÃO I – Parece que ele perdeu suas plantações de fumo. SCHILL – Que agora também pertencem à milionária. CIDADÃO I – Em compensação, vai haver um casamento de arromba com o oitavo marido. O noivado oficial foi celebrado ontem. (Na varanda, ao fundo, aparece Claire Zahanassian, de penhoar. Move a mão direita, a perna esquerda. Tudo isso, talvez, com alguns acordes dedilhados na guitarra, que acompanhem a continuação desta cena da varanda um pouco como nos recitativos das óperas e, conforme o sentido do texto, ora valsa, ora trechos de vários hinos nacionais, etc.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Terminei minha montagem, Roby, a toada popular armênia. (Uma melodia de guitarra.) A música preferida de Zahanassian. Queria ouvi-la sempre. Todas as manhãs. Era um homem e tanto, o velho colosso das finanças, com sua inumerável frota de petroleiros e suas coudelarias. Ainda tinha milhões. Ainda valia a pena um casamento com ele. Era um mestre em dançar na corda bamba, um perito em todas as artes do diabo; tudo o que eu sei, aprendi com ele. (Chegam duas mulheres. Entregam a Schill suas vasilhas do leite.). PRIMEIRA MULHER – Leite, Senhor Schill. SEGUNDA MULHER – Minha vasilha, Senhor Schill. SCHILL – Muito bom dia. Um litro de leite para cada uma. (Abre uma vasilha de leite e quer tirar leite dela.). PRIMEIRA MULHER – Leite integral, Senhor Schill. SEGUNDA MULHER – Dois litros de leite integral. SCHILL – Leite integral. (Vai buscar leite noutra vasilha. Claire Zahanassian contempla a manhã com seu lornhão.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Linda manhã de outono. Uma leve neblina nas ruas, uma névoa prateada e, lá em cima, um céu azul-violeta, como os que pintava o Conde Holk, o meu terceiro marido, o Ministro do Exterior, que gostava de pintar nas férias. Sua pintura era horrorosa. (Senta-se com dificuldade.) O Conde era todo horroroso. PRIMEIRA MULHER – E manteiga. Duzentos gramas. SEGUNDA MULHER – E pão de sanduíche. Dois quilos. SCHILL – Alguma herança, hein? AS DUAS MULHERES – Ponha na conta. SCHILL – Todos por um e um por todos. PRIMEIRA MULHER – E mais dois e vinte de chocolate. SEGUNDA MULHER – Quatro e quarenta. SCHILL – Também para pôr na conta. PRIMEIRA MULHER – Também. SEGUNDA MULHER – O chocolate: vamos comê-lo aqui mesmo. PRIMEIRA MULHER – Para isso, não há nada como a sua loja, Senhor Schill. (Sentam-se ao fundo da loja e comem o chocolate.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Um Winston. Quero experimentar, uma vez, a marca do meu sétimo marido, agora que me divorciei dele, pobre Moby, com a sua paixão da pesca. Deve estar muito triste, no trem rápido que o leva a Portugal. (O Mordomo oferece-lhe um charuto, dá-lhe fogo.). CIDADÃO I – Lá está ela sentada na varanda, soltando baforadas do seu charuto. SCHILL – Sempre marcas caras como o diabo. CIDADÃO I – É o que se chama esbanjar dinheiro. Deveria ter vergonha, diante de uma humanidade reduzida à miséria. CLAIRE ZAHANASSIAN (Fumando) – Esquisito. Não é nada ruim. SCHILL – Ela faz mal os seus cálculos. Eu sou um velho pecador, Hofbauer, quem não o é? A peça que lhe preguei, quando éramos jovens, foi um pouco forte, realmente; mas, quando, no Apóstolo de Ouro, todos recusaram a sua proposta, o povo de Güllen, à unanimidade, apesar da miséria, aquele foi o mais belo momento da minha existência. CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: uísque. Puro. (Chega um segundo freguês, o Cidadão II, pobre e maltrapilho, como todos.). CIDADÃO II – Bom dia. Hoje vai fazer calor. CIDADÃO I – O tempo bom continua. SCHILL – Que animação, esta manhã. Em geral, isto aqui vivia às moscas e agora, de uns dias para cá, a freguesia não pára. CIDADÃO I – É que estamos todos do seu lado. Do lado do nosso Schill. Firmes como rocha. AS MULHERES (Comendo chocolate) – Firmes como rocha. CIDADÃO II – Afinal de contas, você é a pessoa mais querida da cidade. CIDADÃO I – A mais importante. CIDADÃO II – Na primavera, vai ser eleito Burgomestre. CIDADÃO I – Nem se discute. AS MULHERES (Comendo chocolate) – Nem se discute Senhor Schill, nem se discute. CIDADÃO II – Uma garrafa da boa. (Schill apanha uma garrafa na prateleira. O Mordomo serve uísque.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Vá acordar meu noivo. Não gosto de ter maridos que durmam até tão tarde. SCHILL – Três e dez. CIDADÃO II – Essa, não. SCHILL – É a que você sempre bebe. CIDADÃO II – Quero é conhaque. SCHILL – Custa vinte e trinta e cinco. Ninguém pode se permitir uma despesa dessas. CIDADÃO II – Ora, a gente também precisa gozar um pouco a vida. (Uma moça seminua cruza a cena correndo. Toby no seu encalço.). PRIMEIRA MULHER (Comendo chocolate) – Uma pouca vergonha como a Luísa está se portando. SEGUNDA MULHER (Comendo chocolate) – E dizer que é noiva do músico louro da Rua Berthold Schwarz. (Schill tira da estante a garrafa de conhaque.). SCHILL – Tome. CIDADÃO II – E fumo de cachimbo. SCHILL – Bem. CIDADÃO II – De importação. (Schill faz a conta da despesa toda. Na varanda, aparece o Marido Número 8: ator de cinema, alto, magro, bigode ruivo, de robe de chambre. Pode ser interpretado pelo mesmo ator que fez o papel do Marido Número 7.). MARIDO NÚMERO 8 – Não é maravilhoso, meu amor: o nosso primeiro café com leite, depois de noivos? Parece um sonho. Uma pequena varanda, o vento sussurrando nas folhas de uma tília, o gorgolejo do chafariz da Prefeitura, algumas galinhas cruzando a rua, donas de casa tagarelando, num ponto qualquer, com seus pequenos problemas domésticos e, por cima dos telhados, a torre da Catedral! CLAIRE ZAHANASSIAN – Sente-se, Hoby, e cale a boca. A paisagem eu vejo sozinha e pensar não é o seu forte. CIDADÃO II – Agora também o futuro marido está lá em cima. PRIMEIRA MULHER (Comendo chocolate) – O oitavo. SEGUNDA MULHER (Comendo chocolate) – Um bonito homem, ator de cinema. Minha filha o viu fazendo o vilão numa fita de espionagem. PRIMEIRA MULHER – E eu, num papel de padre, num filme tirado de um livro de Graham Greene. (Claire Zahanassian é beijada pelo Marido Número 8. Acorde de guitarra.). CIDADÃO II – Pois é: com dinheiro a pessoa pode obter tudo. (Cospe.). CIDADÃO I – Não na nossa terra. (Bate o punho na mesa.). SCHILL – Vinte e três e oitenta. CIDADÃO II – Ponha na conta. SCHILL – Por esta semana, vou abrir uma exceção. Mas você tem de me pagar no dia primeiro, quando receber seu subsidio de desemprego. (O Cidadão II encaminha-se na direção da porta.) Helmesberger! (O Cidadão II pára. Schill aproxima-se dele.) Você está de sapato novo. Sapato novo marrom. CIDADÃO II – E daí? (Schill olha para os pés do Cidadão I.) Você também, Hofbauer. Você também está de sapato novo. (Olha para as mulheres, aproxima-se delas, devagar, alarmado.) Também as senhoras. Sapato novo marrom. Sapato novo marrom. CIDADÃO I – Não sei o que você vê nisso de extraordinário. CIDADÃO II – Afinal, não se pode andar a vida inteira com os sapatos velhos. SCHILL – Sapato novo. Como é que puderam comprar sapato novo? AS MULHERES – Compramos fiado, Senhor Schill. Compramos fiado. SCHILL – Compraram fiado. Também comigo compraram fiado. Cigarros melhores, fumo importado, leite integral, conhaque. Por que, de repente, conseguem crédito nas lojas de comércio? CIDADÃO II – Você também nos fez crédito. SCHILL – Com que dinheiro vão pagar? (Silêncio. Ele começa a bombardear a freguesia, arremessando mercadorias. Todos fogem.) Com que dinheiro vão pagar? Com que dinheiro vão pagar? Com que dinheiro? Com que dinheiro? (Sai correndo atrás deles, pelo fundo.). MARIDO NÚMERO 8 – Há barulho na vila. CLAIRE ZAHANASSIAN – Vida de aldeola. MARIDO NÚMERO 8 – Parece que aconteceu alguma coisa na loja, lá embaixo. CLAIRE ZAHANASSIAN – Vai ver que estão brigando por causa do preço da carne. (Violento acorde de guitarra. O Marido Número 8 dá um pulo de susto.). MARIDO NÚMERO 8 – Pelo amor de Deus, meu bem! Você ouviu? CLAIRE ZAHANASSIAN – A pantera preta. Rugiu. MARIDO NÚMERO 8 (Espantado) – Uma pantera preta. CLAIRE ZAHANASSIAN – Presente do Paxá de Marrakesh. Está passeando no quarto ao lado deste. Um grande gato feroz, com os olhos lançando faíscas. Gosto muito dela. (À mesa da esquerda, senta-se o Polícia. Bebe cerveja. Fala de modo lento e circunspecto. Do fundo, chega Schill.) Pode servir, Boby. O POLÍCIA – Que deseja Senhor Schill? Sente-se. (Schill fica de pé.) O senhor está tremendo. SCHILL – Peço a prisão de Claire Zahanassian. (O Polícia enche o cachimbo, acende-o com toda a pachorra.). O POLÍCIA – Curioso. Muito curioso. (O Mordomo serve o pequeno almoço, traz o correio.). SCHILL – Estou pedindo isso na qualidade de futuro Burgomestre. O POLÍCIA (Soltando grandes baforadas de fumaça) – Ainda não houve a eleição. SCHILL – Prenda a milionária imediatamente. O POLÍCIA – Devagar. O que o senhor quer dizer é que tenciona denunciar a milionária. Se, depois, ela vai ser presa ou não, quem decide é a polícia. Ela cometeu algum crime? SCHILL – Incitou a população a me matar. O POLÍCIA – E eu deveria prendê-la, assim sem mais nem menos. (Serve-se de cerveja.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O correio. Ike escreveu, mandando felicitações. Nehru também4. SCHILL – É o seu dever. O POLÍCIA – Curioso. Muito curioso. (Bebe cerveja.). SCHILL – A coisa mais natural deste mundo. O POLÍCIA – Meu caro Schill, tão natural assim é que não é. Examinemos os fatos, sem paixão. A velha senhora fez à cidade de Güllen a proposta de dar um bilhão, se alguém – bem, já sabe o que quero dizer. Isso confere, eu estava presente. Mas ainda não é motivo para a polícia tomar medidas contra a Senhora Zahanassian. Afinal de contas, estamos subordinados às leis. SCHILL – Instigação ao homicídio. O POLÍCIA – Escute Senhor Schill. Instigação ao homicídio haveria somente se a proposta de assassinar o senhor fosse feita a sério. É claro? SCHILL – Também acho. O POLÍCIA – Justamente. Ora, a proposta não é possível que fosse feita a sério, porque o preço de um bilhão é exagerado, o senhor mesmo há de admitir, por uma coisa dessas oferecem-se mil, quando muito dois mil, mais é que não, com toda a certeza, pode botar sua mão no fogo. Isso prova, mais uma vez, que a proposta não foi feita a sério, e que, se tivesse sido feita a sério, a polícia não poderia levar a sério a velha senhora, porque, então, ela estaria doida. Pegou? SCHILL – Que ela esteja ou não esteja doida, é a mim que a proposta ameaça senhor Cabo. Isso, sim, que é lógico. O POLÍCIA – Não é lógico, não senhor. O senhor não pode ser ameaçado por uma proposta, mas somente pela concretização de uma proposta. Mostre-me uma tentativa real de concretizar essa proposta, não sei, um homem que aponte a espingarda contra o senhor, e eu entro em ação mais depressa do que o diabo esfrega um olho. Mas, justamente, essa proposta é que ninguém quer concretizar. Ao contrário. A manifestação no Apóstolo de Ouro foi extremamente impressionante. Por sinal que, embora com atraso, quero lhe dar os meus parabéns. (Bebe cerveja.). SCHILL – Não tenho muita certeza disso. O POLÍCIA – Não tem certeza? SCHILL – Meus fregueses estão comprando leite melhor, pão melhor, cigarros melhores. O POLÍCIA – Alegre-se, homem! Aí, vão melhorar os seus negócios. (Bebe cerveja.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: mande açambarcar por minha conta as ações da Dupont. SCHILL – Conhaque comprou o Helmesberger na minha loja. E são anos que não ganha nada e vive da distribuição de sopa aos pobres. O POLÍCIA – Eu vou provar o conhaque hoje à noite. Helmesberger me convidou para ir à casa dele. (Bebe cerveja.). SCHILL – Toda a gente está de sapato novo. Sapato novo marrom. O POLÍCIA – Gostaria de saber o que é que o senhor tem contra sapato novo. Afinal, eu também estou usando sapato novo. (Mostra os pés.). SCHILL – O senhor também. O POLÍCIA – Como vê. SCHILL – Também marrom. E está bebendo cerveja de Pilsen. O POLÍCIA – É gostosa. SCHILL – Antigamente bebia a nacional! O POLÍCIA – Boa droga! (Música de rádio.). SCHILL – Ouça. O POLÍCIA – Que é? SCHILL – Música. O POLÍCIA – A Viúva Alegre. SCHILL – Um rádio. O POLÍCIA – É aqui ao lado, na casa de Hagholzer. Deveriam é fechar a janela, para não importunar os vizinhos. (Toma nota da infração em seu caderninho de apontamentos.). SCHILL – De que jeito Hagholzer conseguiu um aparelho de rádio? O POLÍCIA – Isso é lá com ele. SCHILL – E o senhor, Cabo Hahncke, com que pretende pagar sua cerveja de Pilsen e seu sapato novo? O POLÍCIA – Isso é cá comigo. (O telefone em cima da mesa toca. O Polícia atende.) Distrito Policial de Güllen. CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: telefone aos russos que concordo com a proposta deles. O POLÍCIA – Perfeitamente. (Pousa o fone no gancho.). SCHILL – E os meus fregueses, com que dinheiro vão pagar? O POLÍCIA – A polícia não tem nada com isso. (Levanta-se e pega a espingarda no encosto da cadeira.). SCHILL – Mas eu tenho. Porque é com a minha pessoa que eles vão pagar. O POLÍCIA – Ninguém o está ameaçando. (Começa a carregar a espingarda.). SCHILL – A cidade contrai dívidas. Com as dívidas, aumenta o bem-estar. E, com o bem-estar, a necessidade de me matarem. Assim, a milionária não precisa fazer outra coisa senão ficar sentada na sua varanda, tomar café, fumar charutos e esperar. Somente esperar. O POLÍCIA – O senhor imagina coisas. SCHILL – Todos estão esperando. (Bate na mesa.). O POLÍCIA – O senhor andou é abusando de aguardente. (Maneja a espingarda.) Bem, agora está carregada. O senhor pode ficar descansado. A polícia está aí para fazer respeitar as leis, assegurar a ordem e proteger os cidadãos. Ela sabe qual é o seu dever. Se aparecer a mais leve suspeita de ameaça, seja lá onde for, venha de quem vier, ela agirá. Senhor Schill, quanto a isso, não tenha dúvidas. SCHILL (Em voz baixa) – Por que, então, Cabo Hahncke, o senhor tem um dente de ouro na boca? O POLÍCIA – Hein? SCHILL – Um dente de ouro novinho em folha. O POLÍCIA – Está louco, é? (Agora, Schill percebe que o cano da espingarda está apontando contra ele e levanta levemente as mãos.) Homem: não tenho tempo para ficar discutindo as suas idéias fixas. Preciso ir. A maluca da milionária deixou fugir seu gatinho de estimação. A pantera preta. É preciso caçá-la. (Sai pelo fundo.). SCHILL – É a mim que estão caçando, a mim. (Claire Zahanassian lê uma carta.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O grande costureiro diz que vem. O meu quinto marido, o mais bonito dos meus maridos. Foi ele quem desenhou todos os meus vestidos de noiva. Boby: um minueto. (Minueto tocado na guitarra.). MARIDO NÚMERO 8 – Mas o seu quinto marido era cirurgião. CLAIRE ZAHANASSIAN – O sexto. (Abre outra carta.) Do antigo proprietário da Western Railways. MARIDO NÚMERO 8 (Surpreso) – Desse, não tenho a menor idéia. CLAIRE ZAHANASSIAN – Foi o meu quarto marido. Arruinado. Suas ações, agora, são minhas. Seduzi-o no Palácio de Buckingham. MARIDO NÚMERO 8 – Mas isso foi com Lord Ismael. CLAIRE ZAHANASSIAN – É verdade. Você tem razão, Hoby. Com todo o seu castelo no Yorkshire, eu não me lembrava mais dele. Então, a carta é do meu segundo. Conheci-o no Cairo. Trocamos beijos debaixo da Esfinge. Foi uma noite inesquecível. (Mudança de cena à direita. Desce o letreiro: “Prefeitura”. Chega o Cidadão III, leva embora a caixa registradora da loja e dispõe de modo diferente o balcão de vendas, que, agora, pode utilizar-se como secretária. Chega o Burgomestre. Pousa um revólver em cima da secretária, senta-se. Da esquerda, chega Schill. Na parede está pendurado um projeto de construção.). SCHILL – Preciso falar com o senhor. O BURGOMESTRE – Sente-se. SCHILL – De homem para homem. Como seu sucessor. O BURGOMESTRE – Pois não. (Schill fica em pé, olha para o revólver.) A pantera da Senhora Zahanassian fugiu. Foi vista no interior da Catedral. Aí, é preciso andar armado. SCHILL – Certamente. O BURGOMESTRE – Convoquei todos os homens que possuem armas de fogo. As crianças foram retidas na Escola. SCHILL (Desconfiado) – Um aparato um tanto excessivo. O BURGOMESTRE – Caçada de animal feroz. (Chega o Mordomo.). O MORDOMO – Madame, o Presidente do Banco Mundial. Acaba de chegar, com o avião de Nova York. CLAIRE ZAHANASSIAN – Não estou em casa para ninguém. Que tome o avião de volta. O BURGOMESTRE – Há qualquer coisa que o apoquenta, Schill? Descarregue o coração, livremente. SCHILL (Desconfiado) – O senhor está fumando uma boa marca. O BURGOMESTRE – Pégaso, fumo claro. SCHILL – Meio caros. O BURGOMESTRE – Mas, ao menos, decentes. SCHILL – Antigamente, o senhor Burgomestre fumava outra marca. O BURGOMESTRE – Bernina número cinco. SCHILL – Mais baratos. O BURGOMESTRE – Um fumo forte demais. SCHILL – Gravata nova. O BURGOMESTRE – Seda pura. SCHILL – E sapatos, também comprou, não é? O BURGOMESTRE – Mandei vir de Kalberstadt. Engraçado, como é que sabe? SCHILL – Foi por isso que vim aqui. O BURGOMESTRE – Mas que há com você? Está pálido. Doente? SCHILL – Estou com medo. O BURGOMESTRE – Medo? SCHILL – O bem-estar aumenta. O BURGOMESTRE – Para mim, é novidade. Seria ótimo. SCHILL – Peço a proteção das autoridades. O BURGOMESTRE – É boa. Por quê? SCHILL – Isso o senhor Burgomestre já sabe. O BURGOMESTRE – Que desconfiado! SCHILL – Minha cabeça foi posta a prêmio por um bilhão. O BURGOMESTRE – Dirija-se à polícia. SCHILL – Estive na polícia. O BURGOMESTRE – Isso deve tê-lo tranqüilizado. SCHILL – Na boca do Cabo Hahncke brilha um novo dente de ouro. O BURGOMESTRE – Você esquece que está em Güllen. Numa cidade de tradições humanistas. Onde Goethe passou uma noite e Brahms compôs um quarteto. Esses valores criam obrigações morais. (Da esquerda, entra um homem, o Cidadão III, com uma máquina de escrever.). CIDADÃO III – A nova máquina de escrever, Senhor Burgomestre. Uma Remington do último modelo. O BURGOMESTRE – Ponha no escritório. (O Cidadão III sai à direita.) Não merecemos a sua ingratidão. Se você não tem confiança no nosso município, só posso lastimá-lo. Nunca esperei essa atitude anarquista. Afinal, vivemos sob o império da lei. SCHILL – Então, prenda a milionária. O BURGOMESTRE – Curioso. Muito curioso. SCHILL – Isso o Cabo Hahncke também disse. O BURGOMESTRE – O procedimento da velha senhora, meu Deus, não é assim tão incompreensível. Afinal de contas, você instigou dois rapazes a jurar falso e lançou uma jovem na mais negra miséria. SCHILL – Essa negra miséria sempre representa muitos bilhões, Senhor Burgomestre. (Silêncio.). O BURGOMESTRE – Vamos falar francamente. SCHILL – Não quero outra coisa. O BURGOMESTRE – De homem para homem, como você pediu. Você não tem o direito moral de pretender a prisão da milionária; e, também, tire da cabeça a idéia de se tornar burgomestre. Sinto muito ter de lhe dizer isto. SCHILL – Oficialmente? O BURGOMESTRE – Por incumbência dos partidos. SCHILL – Compreendo. (Vai lentamente até a janela, à esquerda, voltando as costas para o Burgomestre, e olha fixamente para fora.). O BURGOMESTRE – O fato de condenarmos a proposta da velha senhora não quer dizer que aprovemos os crimes que estão na origem dessa proposta. Para o cargo de burgomestre requerem-se certas condições de natureza moral, que você não preenche mais, isso você mesmo há de admitir. Quanto ao resto, é claro que conservamos por você a mesma consideração e amizade de antes. (Da esquerda, Roby e Toby voltam a trazer flores e, cruzando a cena, entram no Hotel do Apóstolo de Ouro.) Sobre isso tudo, porém, o melhor é guardar silêncio. Também à Tribuna de Güllen pedi que não publicasse nada a respeito do caso. (Schill volta-se.). SCHILL – Já estão enfeitando o meu caixão, Burgomestre! Guardar silêncio é muito perigoso para mim. O BURGOMESTRE – Como assim, meu caro Schill? Você deveria até ficar agradecido de que se estenda o manto do olvido sobre um fato tão escabroso. SCHILL – Se falo, ainda tenho a possibilidade de me salvar. O BURGOMESTRE – É o cúmulo! Mas quem deveria ameaçá-lo? SCHILL – Um de vós. (O Burgomestre levanta-se.). O BURGOMESTRE – De quem é que você suspeita? Diga-me o nome e eu abro inquérito. Rigoroso. Doa a quem doer. SCHILL – De cada um de vós. O BURGOMESTRE – Em nome da cidade, lavro o mais veemente protesto contra essa calúnia. SCHILL – Ninguém quer me matar, cada qual tem a esperança de que outro o faça e assim, em certo momento, alguém acabará fazendo-o. O BURGOMESTRE – Você está vendo fantasmas. SCHILL – Estou vendo um projeto de construção na parede. O novo prédio da Prefeitura? (Toca o projeto com o dedo.). O BURGOMESTRE – Meu Deus do céu, ainda se poderão fazer projetos, pois não? SCHILL – Já estão especulando sobre a minha morte! O BURGOMESTRE – Meu caro, se não me assistisse mais o direito, como homem político, de acreditar num futuro melhor, sem ter logo de pensar num crime, renunciaria ao cargo, pode ficar sossegado. SCHILL – Já me condenaram à morte. O BURGOMESTRE – Schill! SCHILL (Em voz baixa) – Esse projeto é uma prova! Irrefutável! CLAIRE ZAHANASSIAN – Onassis também vem. O Duque e a Duquesa. O Aga. MARIDO NÚMERO 8 – E Ali? CLAIRE ZAHANASSIAN – Toda a cambada da Riviera. MARIDO NÚMERO 8 – E jornalistas? CLAIRE ZAHANASSIAN – Do mundo inteiro. Sempre que eu me caso, a imprensa não falta. Ela precisa de mim e eu, dela. (Abre mais outra carta.) Do Conde Holk. MARIDO NÚMERO 8 – Meu bem: é mesmo indispensável que, no primeiro café com leite que tomamos juntos, você fique lendo cartas dos seus antigos maridos? CLAIRE ZAHANASSIAN – Não quero perder de vista a situação geral. MARIDO NÚMERO 8 (Magoado) – Eu também tenho meus problemas. (Levanta-se, olha fixamente para a vila embaixo.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O seu Porsche enguiçou? MARIDO NÚMERO 8 – Esse tipo de cidadezinha me deprime. A tília sussurra, os pássaros cantam, o chafariz gorgoleja, está tudo muito bem, mas isso eles já faziam há meia hora. Não acontece nada, nem com a natureza nem com a população, tudo é paz, saciedade, pasmaceira. Nada de grande, nada de trágico. Falta o clima moral que marca as grandes épocas. (Da esquerda chega o Pároco com uma espingarda a tiracolo. Estende sobre a mesa, à qual, antes, estava sentado o Polícia, um pano branco com uma cruz preta, encosta a espingarda na fachada do Hotel. O Sacristão o ajuda a pôr a veste talar. A cena mergulha na escuridão.). O PÁROCO – Venha, Schill, entre na sacristia. (Schill chega da esquerda.) Aqui é escuro, mas fresquinho. SCHILL – Não quero incomodar, Senhor Pároco. O PÁROCO – A casa de Deus está aberta a todos. (Nota o olhar de Schill, que fita a espingarda.) Não se admire de ver essa arma. A pantera preta da Senhora Zahanassian anda solta por aí. Ainda há pouco, estava aqui em cima, no forro e, agora, foi para o palheiro de Peter. SCHILL – Eu preciso da sua ajuda. O PÁROCO – Contra o quê? SCHILL – Estou com medo. O PÁROCO – Medo? De quem? SCHILL – Dos homens. O PÁROCO – De que os homens o matem, Schill? SCHILL – Eles me caçam como um animal feroz. O PÁROCO – Não se deve temer os homens, mas somente Deus, não a morte do corpo, mas a da alma! Abotoe-me aqui atrás, Sacristão. (Em toda a parte, nas paredes de cena, tornam-se visíveis os homes de Güllen – primeiro, o Polícia e, depois, o Burgomestre, os quatro cidadãos, o Pintor, o Professor – caminhando cautelosamente, à espreita, as espingardas prontas para atirar.). SCHILL – Trata-se da minha vida. O PÁROCO – Da sua vida eterna. SCHILL – Vejo o bem-estar crescer debaixo dos meus olhos. O PÁROCO – O fantasma da sua consciência. SCHILL – O povo anda alegre. As mocinhas se enfeitam. Os rapazes trajam camisas multicores. A cidade se prepara para a festa do meu assassinato e eu morro de pavor. O PÁROCO – O que o senhor sente é um fato positivo. SCHILL – É o inferno. O PÁROCO – O inferno está na sua alma. O senhor é mais velho do que eu e julga que conhece os homens, mas ninguém conhece senão a si mesmo. Porque o senhor há muitos anos, atraiçoou uma moça por dinheiro, acredita que agora também os homens o atraiçoariam por dinheiro. Tira de si conclusões para os outros. Nada mais natural. A razão do nosso temor acha-se no nosso próprio coração, no nosso próprio pecado. Se reconhecer isto, o senhor terá conquistado as armas, com as quais vencer, aquilo que o atormenta. SCHILL – Os Simethofer compraram uma máquina de lavar roupa. O PÁROCO – Não pense nisso. SCHILL – A crédito. O PÁROCO – Pense na imortalidade da alma. SCHILL – E os Stocker, um aparelho de televisão. O PÁROCO – Reze! Sacristão: o peitilho. (O Sacristão amarra o peitilho em torno do pescoço do Pároco.) Faça um exame de consciência. Siga o caminho da contrição, se não quer que o mundo continue a alimentar o fogo do seu medo. É o único caminho. Nada mais podemos fazer. (Silêncio. Os homens armados de espingarda tornam a desaparecer. São apenas sombras à margem da cena. O sino de tocar a rebate começa a repicar.) E agora, Schill, devo exercer o meu santo ministério, tenho um batizado. A Bíblia, Sacristão, os objetos litúrgicos, o Livro dos Salmos. A criança começa a chorar, é preciso protegê-la, colocando-a sob a única luz que ilumina o nosso mundo. (Um segundo sino começa a repicar.). SCHILL – Um segundo sino. O PÁROCO – Não é? Um som estupendo. Cheio, robusto. É fato. SCHILL (Gritando) – O senhor também, Pároco! O senhor também. (O Pároco atira-se sobre Schill e o cinge com seus braços.). O PÁROCO – Fuja! Cristãos ou pagãos somos todos fracos. Fuja! O sino está troando em Güllen, o sino da traição. Fuja: não nos faça cair em tentação, ficando aqui. (Ouvem-se dois tiros. Schill cai ao solo, o Pároco põe-se de cócoras junto dele.) Fuja! Fuja! CLAIRE ZAHANASSIAN – Boby: estão atirando. O MORDOMO – Com efeito, madame. CLAIRE ZAHANASSIAN – Mas por quê? O MORDOMO – A pantera fugiu. CLAIRE ZAHANASSIAN – Os tiros acertaram nela? O MORDOMO – Está morta diante da loja de Schill. CLAIRE ZAHANASSIAN – Coitado do bichinho. Roby: uma marcha fúnebre. (Marcha Fúnebre tocada pela guitarra. A varanda desaparece. Toque de sineta da estrada de ferro. Cena como no começo do primeiro ato. A Estação. Só o horário da parede é novo e, num ponto qualquer, foi afixado um grande cartaz com um deslumbrante sol amarelo: “Visitem o sul”. Outro cartaz: “Assistam às representações da Paixão de Oberammergau”. Ao fundo, notam-se, também alguns guindastes, no meio das casas, bem como alguns telhados novos. A barulheira ensurdecedora de um trem rápido passando a toda velocidade. Diante da Estação, o Chefe da Estação, fazendo continência. Do fundo chega Schill, trazendo na mão pequena maleta, e olha em derredor. Devagar e como que casualmente, chegam de todos os lados, os habitantes de Güllen. Schill hesita, pára.). O BURGOMESTRE – Bom dia, Schill. TODOS – Bom dia! Bom dia! SCHILL (Hesitando) – Bom dia. O PROFESSOR – Para onde vai, com essa maleta? TODOS – Para onde vai? SCHILL – Para a Estação. O BURGOMESTRE – Vamos acompanhá-lo. TODOS – Vamos acompanhá-lo! Vamos acompanhá-lo! (O número de habitantes aumenta cada vez mais.). SCHILL – Não devem, realmente. Não vale a pena. O BURGOMESTRE – Está de viagem, Schill? SCHILL – Estou. O POLÍCIA – E para onde? SCHILL – Não sei. Primeiro, para Kalberstadt e, depois, para mais longe. O PROFESSOR – Ah! E, depois, para mais longe... SCHILL – De preferência, para a Austrália. Sempre hei de encontrar um modo de arranjar o dinheiro da viagem. (Torna a caminhar em demanda da Estação.). TODOS – Para a Austrália! Para a Austrália! O BURGOMESTRE – Mas para que isso? SCHILL – Afinal de contas, não se pode viver eternamente no mesmo lugar, entra ano, sai ano. (Começa a correr, alcança a Estação. Os outros o seguem lentamente, rodeando-o.). O BURGOMESTRE – Emigrar para a Austrália. É ridículo. O MÉDICO – E, no seu caso, o que pode haver de mais perigoso. O PROFESSOR – Também um dos dois pequenos eunucos, afinal, tinha emigrado para a Austrália. O POLÍCIA – O lugar mais seguro para o senhor é aqui mesmo. TODOS – É aqui mesmo, é aqui mesmo. (Schill observa apavorado ao seu redor, como um animal acuado.). SCHILL (Em voz baixa) – Escrevi ao representante do Governo, em Kassigen. O POLÍCIA – E então? SCHILL – Não tive resposta. O PROFESSOR – A sua desconfiança é inconcebível. O BURGOMESTRE – Ninguém o quer matar. TODOS – Ninguém, ninguém. SCHILL – O Correio não remeteu a carta. O PINTOR – Impossível. O BURGOMESTRE – O funcionário do Correio é membro do Conselho Municipal. O PROFESSOR – É um homem de bem. TODOS – Um homem de bem! Um homem de bem! SCHILL – Olhem aqui. Um cartaz: “Visitem o sul”. O MÉDICO – E daí? SCHILL – “Assistam às representações da Paixão de Oberammergau”. O PROFESSOR – E daí? SCHILL – Novos prédios em construção. O BURGOMESTRE – E daí? SCHILL – E todos estão de calças novas. CIDADÃO I – E daí? SCHILL – Tornam-se cada vez mais ricos, vivem cada vez melhor. TODOS – E daí? (Toque de sineta.). O PROFESSOR – O senhor está vendo como todos lhe querem bem. O BURGOMESTRE – A cidade inteira o acompanhou à Estação. TODOS – A cidade inteira! A cidade inteira! SCHILL – Eu não pedi que viessem. CIDADÃO II – Teremos o direito de nos despedir de você, pois não? O BURGOMESTRE – Como velhos amigos. TODOS – Como velhos amigos! Como velhos amigos! (Ruído de trem. O Chefe da Estação pega o bastão para as sinalizações. Da esquerda aparece um Condutor, como se acabasse de saltar do trem.). O CONDUTOR DO TREM (Num grito arrastado) – Güllen! O BURGOMESTRE – Aí está o seu trem. TODOS – O seu trem! O seu trem! O BURGOMESTRE – Bem, Schill, desejo-lhe uma boa viagem. TODOS – Boa viagem! Boa viagem! O MÉDICO – E que a vida continue a lhe sorrir! TODOS – Que a vida continue a lhe sorrir! (Os habitantes de Güllen ajuntam-se ao redor de Schill.). O BURGOMESTRE – Está na hora. Suba ao expressinho para Kalberstadt e que Deus o acompanhe. O POLÍCIA – E muita felicidade, lá na Austrália! TODOS – Muita felicidade! Muita felicidade! (Schill está imóvel, fitando seus concidadãos.). SCHILL (Em voz baixa) – Por que vieram todos aqui? O POLÍCIA – Que mais o senhor está querendo? CHEFE DA ESTAÇÃO – Ocupem seus lugares, façam o favor! SCHILL – Por que ficam todos me rodeando? O BURGOMESTRE – Ninguém o está rodeando, em absoluto. SCHILL – Saiam do caminho! O PROFESSOR – Mas já saímos do caminho. TODOS – Já saímos, já saímos! SCHILL – Alguém vai me segurar. O POLÍCIA – Bobagem. É só o senhor subir para o trem e vai logo ver que isso é bobagem. SCHILL – Vão-se embora. (Ninguém se move. Alguns estão parados com as mãos no bolso das calças.). O BURGOMESTRE – Não sei o que está querendo. É você que deve se decidir! Suba de uma vez para o trem. SCHILL – Vão-se embora! O PROFESSOR – O seu medo é simplesmente ridículo. (Schill cai de joelhos.). O POLÍCIA – O homem enlouqueceu. SCHILL – Estão querendo me segurar. O BURGOMESTRE – Suba para o trem! Suba para o trem! (Silêncio.). SCHILL (Em voz baixa) – Se eu subir para o trem, alguém irá me segurar. TODOS (Asseverando) – Ninguém! Ninguém! SCHILL – Tenho certeza. O POLÍCIA – Olhe que o trem vai partir. O PROFESSOR – Suba de uma vez, homem de Deus. SCHILL – Tenho certeza. Alguém vai me segurar! Alguém vai me segurar! (O Chefe da Estação dá o sinal para o trem partir, o Condutor simula um salto para o estribo de um dos carros e Schill, completamente arrasado, rodeado pelos seus concidadãos, esconde o rosto nas mãos.). O POLÍCIA – Viu? Foi embora debaixo de seu nariz. (Todos abandonam o arrasado Schill, encaminham-se vagarosamente para o fundo, desaparecem.). SCHILL – Estou perdido! ATO III O palheiro de Peter. À esquerda, sentada na sua liteira, está Claire Zahanassian, imóvel, trajando vestido de noiva branco, véu, etc. Na extremidade esquerda da cena, uma escada de mão, um carro de feno, uma velha caleça, palha; no meio, uma pequena pipa. Do teto pendem trapos, sacos bolorentos, enormes teias de aranha. O Mordomo chega do fundo. O MORDOMO – O Médico e o Professor, madame. CLAIRE ZAHANASSIAN – Mande entrar. (Entram o Médico e o Professor, avançam tateando no escuro, acham, por fim, a milionária. Cumprimentam-na. Ambos trajam agora boas e sólidas roupas burguesas, por sinal que até elegantes.). AMBOS – Minha senhora. (Claire Zahanassian contempla-os com o lornhão.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Os senhores estão sujos de poeira. (Ambos sacodem a poeira da roupa.). O PROFESSOR – Desculpe. Tivemos de trepar em cima de uma velha caleça. CLAIRE ZAHANASSIAN – Retirei-me ao palheiro de Peter. Preciso de sossego. O casamento de ainda há pouco, na Catedral, me cansou. Afinal, não sou mais nenhuma mocinha. Sentem-se na pipa. O PROFESSOR – Obrigado. (Senta-se. O Médico fica em pé.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Muito abafado aqui. Sufocante. Mas eu gosto deste palheiro, do cheiro de feno, palha e graxa de roda de carro. Recordações. Todas essas coisas aí, o garfo do estrume, a caleça, o carro de feno quebrado, já estavam aqui, no tempo da minha mocidade. O PROFESSOR – Lugar propício à meditação. (Enxuga o suor.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O sermão do Pároco foi edificante. O PROFESSOR – Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 13: “Da excelência da caridade”. CLAIRE ZAHANASSIAN – E o senhor, também, se saiu muito bem, com o seu coro misto, Professor. Um canto realmente solene. O PROFESSOR – Bach. Um trecho da Paixão Segundo São Mateus. Ainda me sinto todo emocionado. Estavam presentes a alta sociedade internacional, o mundo da finança, o mundo do cinema... CLAIRE ZAHANASSIAN – Saíram todos deslizando em seus Cadillacs, no rumo da capital. Para o banquete de bodas. O PROFESSOR – Minha senhora: não desejamos tomar o seu tempo precioso mais do que o indispensável. Seu marido, decerto, a espera com impaciência. CLAIRE ZAHANASSIAN – Hoby? Mandei-o de volta, no seu Porsche, para os estúdios de Munique. O MÉDICO (Espantado) – Como? CLAIRE ZAHANASSIAN – Meus advogados já deram entrada ao pedido de divórcio. O PROFESSOR – Mas os convidados para o casamento, minha senhora? CLAIRE ZAHANASSIAN – Estão acostumados. O segundo mais curto dos meus casamentos. Só com Lord Ismael é que foi ainda mais rápido. Que os traz aqui? O PROFESSOR – Viemos tratar do caso do Senhor Schill. CLAIRE ZAHANASSIAN – Oh! Morreu? O PROFESSOR – Minha senhora! Afinal de contas, temos os nossos princípios, os princípios da civilização ocidental. CLAIRE ZAHANASSIAN – Então, que querem de mim? O PROFESSOR – Infelizmente, a população de Güllen andou fazendo compras. O MÉDICO – Muitas, até demais. (Os dois enxugam o suor.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Está endividada? O PROFESSOR – De modo irremediável. CLAIRE ZAHANASSIAN – Apesar dos princípios? O PROFESSOR – Não passamos de seres humanos. O MÉDICO – E agora precisamos pagar as nossas dívidas. CLAIRE ZAHANASSIAN – Já sabem o que devem fazer. O PROFESSOR (Corajosamente) – Senhora Zahanassian. Falemos abertamente. Ponha-se um pouco na nossa triste situação. Faz vinte anos que eu lanço, nesta empobrecida coletividade, as tenras sementes do humanismo, e o Médico Municipal percorre aos solavancos, no seu velho Mercedes, os caminhos que o levam aos pacientes tuberculosos e raquíticos. Por que esse penoso sacrifício? Pelo dinheiro? Francamente. Nosso ordenado é mínimo; eu recusei sumariamente um posto no Liceu Superior de Kalberstadt, e o Médico, o contrato para um curso na Universidade de Erlangen. Por puro amor à humanidade? Isso também seria exagero. Não. Resistimos e, conosco, a vila inteira, durante todos esses intermináveis anos, porque temos uma esperança, a esperança de ver ressuscitar a antiga grandeza de Güllen, de que sejam novamente compreendidas as possibilidades que encerra, com pródiga abundância, o solo da nossa pátria. Há petróleo na baixada de Pückenried, há minério sob a floresta da Fonte Imperial. Nós não somos pobres, madame; apenas fomos esquecidos. Precisamos de crédito, de confiança, de encomendas; e, aí, a nossa economia tornará a florescer, bem como a nossa cultura. Güllen tem alguma coisa para oferecer: a Fundição Sol Nascente. O MÉDICO – Bockmann. O PROFESSOR – As Indústrias Wagner. Compre-as, minha senhora, saneie as suas finanças, e Güllen voltará à prosperidade. Trata-se de investir, segundo um planejamento e com bons juros, uma centena de milhões, e não de jogar fora um bilhão! CLAIRE ZAHANASSIAN – Disponho de mais dois. O PROFESSOR – Não deixe que resistamos inutilmente durante uma vida inteira. Não pedimos uma esmola, oferecemos um negócio. CLAIRE ZAHANASSIAN – Realmente, o negócio não seria mau. O PROFESSOR – Madame! Eu sabia que a senhora não iria nos abandonar. CLAIRE ZAHANASSIAN – Só que não é realizável. Não posso comprar a Fundição Sol Nascente, porque ela já me pertence. O PROFESSOR – À senhora? O MÉDICO – E Bockmann? O PROFESSOR – As Indústrias Wagner? CLAIRE ZAHANASSIAN – Tudo propriedade minha. As fábricas, a baixada de Pückenried, o palheiro de Peter, a vila toda, rua por rua e casa por casa. Mandei os meus agentes comprar toda essa caqueirada, paralisar o trabalho em toda parte. Sua esperança foi uma ilusão, sua resistência, um absurdo, seu sacrifício, uma estupidez, sua vida inteira, um inútil desperdício. (Silêncio.). O MÉDICO – Mas é monstruoso. CLAIRE ZAHANASSIAN – Era inverno, naquele tempo, quando deixei esta vila, com minha blusa à marinheira, minhas tranças ruivas, em estado de avançada gravidez, as pessoas na rua zombando de mim. Tremendo de frio, eu me sentei no trem rápido para Hamburgo; mas, assim que os contornos do palheiro de Peter desapareceram atrás dos cristais de gelo nos vidros da janela, decidi que, algum dia, haveria de voltar. Agora, aqui estou. Agora, eu imponho as condições, dito os termos do negócio. (Em voz alta.) Roby e Toby: vamos para o Apóstolo de Ouro. O Marido Número 9 chegou, com seus livros e manuscritos. (Os dois monstros vêm do fundo e levantam a liteira.). O PROFESSOR – Senhora Zahanassian! A senhora é uma mulher ferida no seu amor. A senhora pede justiça absoluta. Eu a vejo como uma heroína da antiguidade, como uma Medeia. Mas, justamente porque compreendemos no mais profundo do seu ser, a senhora nos dá coragem de lhe fazer mais um pedido: abandone o funesto pensamento da vingança, não nos reduza à última extremidade, auxilie uma população pobre, fraca, mas honesta, a levar uma existência mais digna. Procure vencer-se a si mesma, alçando-se a um puro sentimento de humanidade. CLAIRE ZAHANASSIAN – O sentimento de humanidade foi feito, realmente, para a bolsa dos ricos, mas quem tem o meu poderio financeiro pode dar-se ao luxo de criar logo uma nova ordem mundial. O mundo fez de mim uma mulher da vida e eu quero fazer dele um bordel. Quem não tem dinheiro e quer entrar na dança, que agüente firme. Vocês quiseram entrar na dança. Pessoa decente é somente quem paga – e eu pago. Güllen por um assassinato, prosperidade econômica por um cadáver. Olá, vocês dois, vamos! (Sai de cena pelo fundo, levada pelos dois gângsteres.). O MÉDICO – Meu Deus, que devemos fazer? O PROFESSOR – O que manda a nossa consciência, Doutor Nüsslin. (Na parte baixa, à direita, torna-se visível a loja de Schill. Letreiro novo. Balcão de vendas novinho em folha, nova caixa registradora, mercadorias de primeira. Quando alguém entra pela porta imaginária, sonoro retinir de campainha. Atrás do balcão de vendas, a Senhora Schill. Da esquerda chega o Cidadão I: aspecto de açougueiro enriquecido, o avental novo salpicado de sangue.). CIDADÃO I – Isso, sim, foi uma festa. Toda Güllen olhando o espetáculo na Praça da Catedral. SENHORA SCHILL – A Clarinha bem que mereceu essa felicidade, depois de todas as misérias por que passou. CIDADÃO I – Atrizes de cinema como demoiselles d’honneur. Com peitos assim. SENHORA SCHILL – Hoje em dia, é moda. CIDADÃO I – E jornalistas. Vão também passar por aqui. SENHORA SCHILL – Nós somos simples, Senhor Hofbauer. Que é que eles viriam procurar aqui? CIDADÃO I – Estão interrogando todo o mundo. Cigarros: faz favor. SENHORA SCHILL – Áriston, ponta de cortiça? CIDADÃO I – Camel. E um Alka-Seltzer. Fizemos uma farrinha ontem à noite, na casa dos Stocker. SENHORA SCHILL – Ponho na conta? CIDADÃO I – Ponha na conta. SENHORA SCHILL – E como vai o açougue? CIDADÃO I – Vai indo. SENHORA SCHILL – Também não posso me queixar. CIDADÃO I – Tive de pegar pessoal. SENHORA SCHILL – No dia primeiro, também terei um empregado. (A Senhorita Luisa cruza a cena, elegantemente vestida.). CIDADÃO I – Sabe-se lá o que pensa essa aí, vestindo-se desse modo. Na certa, acredita que seríamos capazes de matar Schill. SENHORA SCHILL – Uma sem-vergonha. CIDADÃO I – Onde é que ele está? Há muito que não o vejo. SENHORA SCHILL – Lá em cima, no quarto. (O Cidadão I acende um cigarro, escuta o que há lá em cima.). CIDADÃO I – Passos. SENHORA SCHILL – Anda e um lado para o outro. Há dias. CIDADÃO I – Consciência pesada. Ele se portou muito mal com a pobre senhora Zahanassian. SENHORA SCHILL – Eu também sofro com isso. CIDADÃO I – Atirar uma menina na sarjeta. Passa fora! (Decidido.) Senhora Schill: espero que o seu marido não vá dar com a língua nos dentes, quando vierem os jornalistas. SENHORA SCHILL – Qual nada. CIDADÃO I – Com o caráter que ele tem. SENHORA SCHILL – Minha vida não é nada fácil, Senhor Hofbauer. CIDADÃO I – Se ele quiser comprometer Clara, contando lorotas, dizendo que ela ofereceu dinheiro pela sua morte ou coisa que o valha, o que foi apenas expressão de uma dor cruciante, nós seremos obrigados a intervir. Não por causa do bilhão. (Cospe.) Mas por causa da revolta popular. Deus sabe que a senhora Zahanassian já sofreu bastante por culpa dele. (Olha em derredor.) É por aqui que se sobe ao apartamento? SENHORA SCHILL – É a única escada. Meio incômoda. Mas, na primavera, vamos fazer uma reforma. CIDADÃO I – Eu vou é me plantar aqui. Seguro morreu de velho. (O Cidadão I planta-se no extremo à direita da cena, com os braços cruzados, imóvel, como sentinela. Chega o Professor.). O PROFESSOR – Schill? CIDADÃO I – Lá em cima. O PROFESSOR – Não é nada o meu gênero, mas, hoje, estou mesmo precisando de uma bebida bem forte. SENHORA SCHILL – É um prazer que o senhor, uma vez, venha nos visitar, Professor. Recebi uma nova genebra. Quer provar? O PROFESSOR – Um cálice? SENHORA SCHILL – O senhor também, Hofbauer? CIDADÃO I – Não, obrigado. Ainda preciso ir a Kassigen no meu Volkswagen. Comprar uns leitões. (A Senhora Schill serve a genebra, o Professor bebe.). SENHORA SCHILL – Mas o senhor está tremendo, Professor. O PROFESSOR – Ando bebendo demais, nos últimos tempos. SENHORA SCHILL – Mais um não lhe vai fazer mal. O PROFESSOR – É ele que está passeando? (Presta atenção aos passos lá em cima.). SENHORA SCHILL – De um lado para o outro, o dia inteiro. CIDADÃO I – Deus o castigará. (O Pintor chega da esquerda, sobraçando um quadro. Roupa nova de veludo cotelê, lenço multicor ao pescoço, boina basca preta.). O PINTOR – Cuidado. Dois jornalistas me perguntaram por esta loja. CIDADÃO I – Muito suspeito. O PINTOR – Fingi que não sabia de nada. CIDADÃO I – Foi inteligente. O PINTOR – Para a senhora. Acaba de sair do cavalete. Está ainda úmido de tinta. (Mostra o quadro à Senhora Schill. O Professor serve-se sozinho de genebra.). SENHORA SCHILL – Meu marido. O PINTOR – A arte começa agora a prosperar em Güllen. Que pintura, hein? SENHORA SCHILL – É parecido. O PINTOR – Óleo. Dura pela eternidade. SENHORA SCHILL – Eu poderia pendurar o quadro no quarto de dormir. Por cima da cama. Alfredo está ficando velho. Nunca se sabe o que pode acontecer e a gente sente prazer em ter uma recordação. (Lá fora passam - elegantemente vestidas, as duas mulheres do segundo ato e contemplam as mercadorias expostas na imaginária vitrina.). CIDADÃO I – Essas mulheres! Vão para o cinema em plena luz do dia. Portam-se como se fôssemos os mais desalmados dos assassinos! SENHORA SCHILL – É caro? O PINTOR – Trezentos. SENHORA SCHILL – Por enquanto, não posso pagar. O PINTOR – Não faz mal. Eu espero Senhora Schill, espero, ora esta. O PROFESSOR – Esses passos, sempre esses passos. (Da esquerda chega o Cidadão II.). CIDADÃO II – Os jornalistas. CIDADÃO I – Bico calado. Questão de vida ou de morte. O PINTOR – Cuidado para ele não descer. CIDADÃO I – Deixe isso por minha conta. (Os homens de Güllen postam-se à direita. O Professor, que já esvaziou meia garrafa, fica em pé junto do balcão de vendas. Chegam dois jornalistas com suas máquinas fotográficas.). PRIMEIRO JORNALISTA – Boa noite, minha gente. OS GÜLLENSES – Boa noite. PRIMEIRO JORNALISTA – Pergunta número 1: como se sentem, assim, de um modo geral? CIDADÃO I (Meio sem jeito) – Estamos contentes, naturalmente, com a visita da senhora Zahanassian. O PINTOR – Comovidos. CIDADÃO II – Ufanos. PRIMEIRO JORNALISTA – Ufanos. SEGUNDO JORNALISTA – Pergunta número 2, à Senhora que está atrás do balcão: disseram que preferiram a senhora à senhora Zahanassian. (Silêncio. Os habitantes de Güllen estão visivelmente assustados.). SENHORA SCHILL – Quem foi que disse isso? (Silêncio. Os dois jornalistas escrevem com indiferença em seus caderninhos de apontamentos.). PRIMEIRO JORNALISTA – Os dois gorduchos baixos e cegos da senhora Zahanassian. SENHORA SCHILL (Hesitando) – Que foi que eles contaram? SEGUNDO JORNALISTA – Tudo. O PINTOR – Raios que os partam! (Silêncio.). SEGUNDO JORNALISTA – Parece que Claire Zahanassian e o dono desta loja estiveram a pique de se casar, há mais de quarenta anos. Confere? (Silêncio.). SENHORA SCHILL – Sim. SEGUNDO JORNALISTA – O Senhor Schill está aqui? SENHORA SCHILL – Em Kalberstadt. TODOS – Em Kalberstadt. PRIMEIRO JORNALISTA – Podemos facilmente imaginar o romance. O Senhor Schill e Claire Zahanassian crescem juntos, talvez sejam filhos de vizinhos, vão juntos para a Escola. Depois, os passeios na floresta, os primeiros beijos fraternais, até que o Senhor Schill conhece a Senhora, que aparece aos seus olhos como a novidade, o inédito, a paixão. SENHORA SCHILL – A paixão. As coisas se passaram exatamente como o senhor disse. PRIMEIRO JORNALISTA – Crânio, Senhora Schill, modéstia à parte. Claire Zahanassian compreende, renuncia, com seus modos tranqüilos, nobres, e a Senhora se casa... SENHORA SCHILL – Por amor. OS OUTROS GÜLLENSES (Aliviados) – Por amor. PRIMEIRO JORNALISTA – Por amor. (Da direita chegam os dois eunucos, que Roby traz, segurando-os pelas orelhas.). OS DOIS (Choramingando) – Nunca mais contaremos nada, nunca mais contaremos nada. (São conduzidos para o fundo, onde Toby os aguarda com um chicote.). SEGUNDO JORNALISTA – Senhora Schill: não será que seu marido, de vez em quando... quero dizer, seria humano, afinal de contas, que de vez em quando estivesse um pouco arrependido. SENHORA SCHILL – Só dinheiro não traz felicidade. SEGUNDO JORNALISTA – Não traz felicidade. PRIMEIRO JORNALISTA – Isso é uma verdade que nós, homens modernos, nunca gravaremos bastante na cabeça. (O Filho chega da esquerda. Trajando jaqueta de camurça.). SENHORA SCHILL – Nosso filho Walter. PRIMEIRO JORNALISTA – Um rapagão. SEGUNDO JORNALISTA – Ele está ao corrente das relações...? SENHORA SCHILL – Na nossa família, não temos segredos. Dizemos sempre: aquilo que Deus sabe; também os nossos filhos devem saber. SEGUNDO JORNALISTA – Também os filhos devem saber. (A Filha entra na loja em trajes de tênis, segurando uma raqueta.). SENHORA SCHILL – A nossa filha Marlene. SEGUNDO JORNALISTA – Um encanto. (Agora, o Professor sente que chegou a sua vez.). O PROFESSOR – Cidadãos de Güllen. Sou o vosso velho Professor. Fiquei bebendo, sossegado, a minha genebra e ouvi calado tudo o que se disse. Agora, porém, quero fazer um discurso, quero falar da visita da velha senhora a Güllen. (Trepa na pipa, que ainda sobrou do palheiro de Peter.). CIDADÃO I – Está doido? CIDADÃO II – Chega! O PROFESSOR – Cidadãos de Güllen! Quero proclamar a verdade, mesmo que a nossa miséria deva durar eternamente. SENHORA SCHILL – O senhor está bêbado, Professor, deveria se envergonhar. O PROFESSOR – Envergonhar-me? Eu? Tu, mulher, deverias te envergonhar, pois te preparas para atraiçoar teu marido! O FILHO – Fecha a tampa! CIDADÃO I – Tirem-no daí para baixo! CIDADÃO II – Rua com ele! O PROFESSOR – Já avançamos demais, perigosamente, no declive fatal! A FILHA (Implorando) – Senhor Professor! O PROFESSOR – Tu me decepcionas, filhinha. Caberia a ti falar; em vez disso, deve fazê-lo, em voz trovejante, um velho Professor! (O Pintor dá com o quadro na cabeça dele.). O PINTOR – Toma! Assim aprendes a querer estragar os meus negócios! O PROFESSOR – Protesto! Perante a opinião pública do mundo inteiro! Preparam-se em Güllen monstruosidades! (Os güllenses atiram-se para cima dele, mas, nesse momento, chega Schill, da direita, trajando uma roupa esfiapada.). SCHILL – Que está se passando na minha loja? (Os güllenses largam o Professor e ficam fitando Schill, assustados. Silêncio mortal.) Que é que o senhor quer em cima da pipa, Professor? (O Professor olha para Schill, aliviado, radiante.). O PROFESSOR – A verdade, Schill. Estou contando a verdade aos senhores da imprensa. Em voz trovejante, como um arcanjo. (Cambaleia.) Porque sou um humanista, amigo dos antigos gregos e admirador de Platão. SCHILL – Cale-se. O PROFESSOR – Hein? SCHILL – Desça daí. O PROFESSOR – Mas a minha humanidade... SCHILL – Sente-se. (Silêncio.). O PROFESSOR (O pileque já lhe passou um pouco) – Sentar-se. A minha humanidade deve sentar-se. Pois seja, já que também o senhor atraiçoa a verdade. (Desce da pipa e senta-se, com o quadro ainda enfiado na cabeça.). SCHILL – Queiram desculpar. O homem está bêbado. SEGUNDO JORNALISTA – O senhor Schill? SCHILL – Que desejam de mim? PRIMEIRO JORNALISTA – Sorte a nossa que ainda conseguimos encontrá-lo por aqui. Precisamos bater umas chapas. O senhor dá licença? (Olha em derredor.) Comestíveis, utensílios domésticos, artefatos de ferro... Já sei: batemos uma chapa do senhor vendendo um machado. SCHILL (Hesitando) – Um machado? PRIMEIRO JORNALISTA – Ao açougueiro. Não há nada como o natural, para produzir efeito. Dê cá esse instrumento de carrasco. O seu freguês pega o machado, pesa-o com a mão, faz uma cara de quem pensa no assunto e o senhor se debruça por cima do balcão, gabando a qualidade do artigo. Por favor. (Compõe o quadro.) Mais naturalidade, por favor, mais desembaraço. (Os jornalistas batem a chapa.) Muito bem, ótimo. SEGUNDO JORNALISTA – Agora, um grupo da família. Por favor, passe o seu braço sobre o ombro da esposa. O Filho, à esquerda, a Filha à direita. E agora, por favor, um sorriso irradiando alegria, irradiando felicidade, irradiando profunda satisfação. PRIMEIRO JORNALISTA – Uma beleza: como irradiaram. (Da esquerda baixa chegam alguns fotógrafos e sobem a cena correndo para a esquerda alta. Ao passarem, um deles grita para dentro da loja.). O FOTÓGRAFO – A Zahanassian arranjou outro marido. Vão passear na floresta da Fonte Imperial. SEGUNDO JORNALISTA – Outro! PRIMEIRO JORNALISTA – Isso dá capa no Life. (Os dois jornalistas saem correndo da loja. Silêncio. O Cidadão I continua segurando o machado.). CIDADÃO I (Aliviado) – Tivemos sorte. O PINTOR – Você vai me desculpar, Professor. Mas se ainda queremos que as coisas se arranjem de modo pacífico, a imprensa não tem de saber de nada. Entendeu? (Sai. O Cidadão II o segue, mas ainda pára um momentinho diante de Schill.). CIDADÃO II – Foi inteligente, foi muito inteligente, da sua parte, não dizer besteiras. De um patife como você, ninguém acreditaria mesmo uma só palavra. (Sai.). CIDADÃO I – Agora, ainda vão publicar nossas caras nas revistas, Schill. SCHILL – Pois é. CIDADÃO I – Vamos ficar célebres. SCHILL – Por modo de dizer. CIDADÃO I – Um Partagás. SCHILL – Sirva-se. CIDADÃO I – Ponha na conta. SCHILL – Naturalmente. CIDADÃO I – Falando com toda a franqueza: aquilo que você fez a Clarinha, só mesmo um canalha é que faz. (Faz menção de sair.). SCHILL – O machado, Hofbauer. (O Cidadão I hesita, e, depois, devolve-lhe o machado. Silêncio na loja. O Professor continua sentado na pipa.). O PROFESSOR – O senhor deve me desculpar. Andei provando a sua nova genebra, uns dois ou três cálices. SCHILL – Está bem. (A família sai pela direita.). O PROFESSOR – Eu queria ajudá-lo. Mas me bateram e o senhor também não quis. (Livra-se do quadro.) Ah, Schill, que gente somos nós. O infame bilhão arde nas nossas entranhas. Crie coragem, homem, lute pela sua vida, provoque a grita da imprensa, o senhor não tem mais tempo a perder. SCHILL – Não vou mais lutar. O PROFESSOR (Espantado) – Escute uma coisa, será que o medo lhe fez perder a cabeça? SCHILL – Compreendi que não tenho mais direito. O PROFESSOR – Não tem direito? Em relação a essa maldita milionária, a essa arquimarafona, que troca de marido a toda a hora diante dos nossos olhos, despudoradamente, e vai coletando as nossas almas, uma por uma? SCHILL – Afinal, a culpa é minha. O PROFESSOR – Culpa? SCHILL – Fui eu que fiz de Clara, o que ela é e de mim, aquilo que sou: um pobre comerciante, um pé-rapado qualquer. Que quer, Professor? Que me finja inocente? Tudo é obra minha, os eunucos, o Mordomo, o caixão de defunto, o bilhão. Não posso fazer mais nada nem por mim nem por ninguém. (Pega a tela furada e a contempla.) O meu retrato. O PROFESSOR – Sua mulher queria pendurá-lo no quarto de dormir. Por cima da cama. SCHILL – Não tem importância; Kühn irá pintar outro. (Pousa o quadro sobre o balcão de vendas. O Professor levanta-se, a custo, cambaleando.). O PROFESSOR – Agora, estou outra vez lúcido, de repente. (Caminha, cambaleando, na direção de Schill.) O senhor tem razão. Tem toda a razão. O senhor é que é culpado de tudo. E agora, eu vou lhe dizer uma coisa, Alfredo Schill, uma coisa fundamental. (Empertiga-se diante de Schill, apenas oscilando de leve.) Eles vão matá-lo. Eu sei desde o começo e o senhor também já o sabe há muito tempo, mesmo se em Güllen mais ninguém quer admiti-lo. A tentação é muito grande e a nossa pobreza, muito dolorosa. Mas sei ainda outra coisa. Eu também tomarei parte no crime. Sinto como, aos poucos, estou me tornando um assassino. Minha fé na humanidade é impotente. E porque sei disso é que comecei a beber. Eu tenho medo, Schill, exatamente como o senhor teve medo. E sei, ainda, que, algum dia, chegará uma velha senhora também para nós e que, então, se passará conosco o que, se passa com o senhor; só que, daqui a pouco, dentro de algumas horas, talvez, não saberei mais. (Silêncio.) Outra garrafa de genebra. (Schill põe diante dele outra garrafa; o Professor hesita, mas, depois, decidido, pega a garrafa.) Ponha na conta. (Sai lentamente. A família chega de volta. Schill contempla a loja em derredor, como que sonhando.). SCHILL – Tudo novo. Tudo, agora, tem um ar moderno. Limpo e agradável. Uma loja assim sempre foi o meu sonho. (Tira a raqueta da mão da Filha.) Você joga tênis? A FILHA – Andei tomando umas aulas. SCHILL – De manhã cedo, não é? Em lugar de procurar trabalho no Departamento de Empregos? A FILHA – Todas as minhas amigas jogam tênis. (Silêncio.). SCHILL – Da janela do quarto, vi você num automóvel, Walter. O FILHO – É só um Opel Olympia, são carros relativamente baratos. SCHILL – Quando foi que você aprendeu a dirigir? (Silêncio.) Em vez de ir ver se havia trabalho na Estação, sob o sol escaldante, não é? O FILHO – Sim, às vezes. (Meio vexado, o Filho leva embora, pelo fundo, a pipa em que esteve sentado o bêbado.). SCHILL – Procurando minha roupa dos domingos, encontrei uma capa de peles. SENHORA SCHILL – Mandaram para eu ver, sem compromisso. (Silêncio.) Toda a gente faz dívidas, Alfredo. Só você é que anda histérico. Seu medo é simplesmente ridículo. É evidente que as coisas irão se acomodar, sem que ninguém toque num só fio dos seus cabelos. Clarinha não vai levar o caso às últimas, eu a conheço bem, ela tem bom coração. A FILHA – Com toda a certeza, pai. O FILHO – Deveria compreender isso. (Silêncio.). SCHILL (Lentamente) – Hoje é sábado. Gostaria, ao menos uma vez, de dar um passeio no seu carro, Walter. No nosso carro. O FILHO (Incerto) – Quer mesmo? SCHILL – Vão vestir suas roupas novas. Iremos passear todos juntos. SENHORA SCHILL (Incerta) – Eu também? Não me parece próprio. SCHILL – Por que não deveria ser próprio? Vista a sua capa de peles, assim o passeio servirá para estreá-la. Enquanto isso, eu faço a caixa. (A Senhora Schill e a Filha saem à direita, o Filho, à esquerda. Schill ocupa-se com a caixa registradora. Da esquerda, chega o Burgomestre com a espingarda.). O BURGOMESTRE – Boa tarde, Schill. Não se incomode. Entrei só de passagem. SCHILL – À vontade. (Silêncio.). O BURGOMESTRE – Trouxe uma espingarda. SCHILL – Obrigado. O BURGOMESTRE – Está carregada. SCHILL – Não preciso dela. (O Burgomestre encosta a espingarda no balcão de vendas.). O BURGOMESTRE – Hoje à noite há assembléia do município. No Apóstolo de Ouro. Na sala do teatro. SCHILL – Eu irei. O BURGOMESTRE – Todos irão. É para tratar do seu caso. Estamos, de certo modo, num beco sem saída. SCHILL – Também acho. O BURGOMESTRE – A proposta da milionária vai ser recusada. SCHILL – É possível. O BURGOMESTRE – A gente pode se enganar, é claro. SCHILL – É claro. (Silêncio.). O BURGOMESTRE (Cautelosamente) – Nesse último caso, você aceitaria a decisão, Schill? É que a imprensa estará presente. SCHILL – A imprensa? O BURGOMESTRE – E o rádio, a televisão, as Atualidades Cinematográficas. Uma situação melindrosa, não apenas para você, mas, também, para nós, acredite. Como vila natal da senhora Zahanassian e graças ao seu casamento na Catedral, ficamos tão conhecidos, que já estão fazendo uma reportagem sobre as nossas velhas instituições democráticas. (Schill ocupa-se com a caixa registradora.). SCHILL – O senhor vai tornar pública a proposta da milionária? O BURGOMESTRE – Não de modo direto. Somente os iniciados poderão compreender o verdadeiro alcance dos debates. SCHILL – Isto é: que está em jogo a minha vida. (Silêncio.). O BURGOMESTRE – Orientei a imprensa no sentido de que, possivelmente, a senhora Zahanassian fará uma doação à cidade e de que você, como seu amigo de juventude, teria conseguido essa doação. Que você foi seu amigo na juventude, já se tornou notório. Assim, aconteça o que acontecer, você, ao menos oficialmente, estará reabilitado. SCHILL – É muito amável de sua parte. O BURGOMESTRE – Para dizer a verdade, não fiz isso por você, mas pela sua corajosa e honrada família. SCHILL – Compreendo. O BURGOMESTRE – Estamos jogando com as cartas na mesa, isso você há de reconhecer, Schill. Você, até agora, guardou silêncio. Muito bem. Mas será que vai continuar a guardar silêncio? Porque, se quiser falar, seremos obrigados a fazer tudo mesmo sem assembléia do município. SCHILL – Compreendo. O BURGOMESTRE – E então? SCHILL – Estou satisfeito de ouvir uma ameaça direta. O BURGOMESTRE – Eu não o estou ameaçando, Schill, você é que nos ameaça. Se falar, não teremos outro remédio senão agir. Antes. SCHILL – Eu não falarei. O BURGOMESTRE – Qualquer que seja a decisão da assembléia? SCHILL – Qualquer que ela seja: está aceita desde já. O BURGOMESTRE – Ótimo. (Silêncio.) Alegra-me, Schill, que você se submeta ao juízo do município. Vê-se que seus brios ainda não se apagaram de todo. Mas não seria melhor se pudéssemos dispensar de uma vez essa assembléia? SCHILL – Que quer dizer com isso? O BURGOMESTRE – Ainda há pouco, você disse que não precisava da espingarda. Contudo, quem sabe se, agora, já não está precisando dela? (Silêncio.) Nesse caso, poderíamos dizer à velha senhora que nós o condenamos e, assim, receberíamos do mesmo modo o dinheiro. Olhe que me custou noites de sono fazer-lhe esta proposta, pode acreditar. Afinal de contas, porém, seria do seu dever, como homem de bem, tirar as conseqüências dos seus atos e pôr um termo à sua vida, não acha? Quando mais não fosse, por um sentimento de solidariedade cívica, por amor à sua cidade natal. Você conhece a nossa lamentável situação de penúria, a miséria, as crianças passando fome... SCHILL – As coisas vão indo muito bem para todos. O BURGOMESTRE – Schill! SCHILL – Burgomestre! Eu já sofri o inferno. Vi a vila toda contraindo dívidas; senti a morte rastejar mais perto de mim a cada novo início de bem-estar. Se me houvessem poupado esse medo, esse tremendo pavor, tudo teria corrido de outro modo, poderíamos falar de outro modo, eu tomaria a espingarda. Pelo bem de todos. Mas, agora, eu me tranquei, venci o meu medo. Foi duro, mas consegui. Não se pode mais voltar atrás. Vocês todos terão de ser os meus juízes. Submeto-me à sua sentença, qualquer que seja. Para mim, ela será a voz da justiça; não sei o que será para vocês. Deus queira que possam responder - por ela - diante da sua consciência. Podem me matar: não me queixo; não protesto; não me defendo, mas não posso aliviá-los do seu ato. (O Burgomestre pega novamente a espingarda.). O BURGOMESTRE – É pena. Você deixa escapar a última oportunidade de se reabilitar, de se tornar um homem mais ou menos de bem. Mas, evidentemente, isso seria pretender demais. SCHILL – Fogo, Senhor Burgomestre. (Acende-lhe um cigarro. O Burgomestre sai. A Senhora Schill entra de capa de peles, a Filha, de vestido vermelho.) Você tem um ar distinto, Matilde. SENHORA SCHILL – Astracã. SCHILL – Como uma grande dama. SENHORA SCHILL – É um pouco caro. SCHILL – Bonito o seu vestido, Marlene. Mas um tanto ousado, você não acha? A FILHA – Qual nada, pai. Você deveria ver o meu vestido de noite. (A loja desaparece. O Filho chega de automóvel.). SCHILL – Bonito carro. A vida inteira eu me esforcei para juntar um dinheirinho, melhorar o nosso padrão de vida, comprar um automóvel destes, por exemplo; e, agora que chegamos a esse ponto, gostaria de saber como é que a pessoa se sente quando tem um. Você vem comigo atrás, Matilde; Marlene se senta na frente, ao lado de Walter. (Sobem para o carro.). O FILHO – Este carro dá 120 quilômetros por hora. SCHILL – Não corra tão depressa. Quero apreciar estas redondezas, a cidadezinha onde vivi durante quase setenta anos. Estão limpas, as nossas velhas ruas, já surgiram algumas novas casas. Uma fumaça cinzenta subindo das chaminés e gerânios nas sacadas, girassóis e rosas nos jardins perto da Porta Goethe, risos de crianças, casaizinhos de namorados em toda a parte. Bem moderno este novo edifício da Praça Brahms. SENHORA SCHILL – O Café Hodel está passando por uma reforma. A FILHA – O Médico, no seu Mercedes 300. SCHILL – A planície com as colinas ao fundo, hoje como que revestidas de ouro. Grandiosas as sombras em que mergulhamos; e, agora, novamente a luz. Que enormes os guindastes das Indústrias Wagner contra o horizonte e as chaminés de Bockmann. O FILHO – Vão voltar à atividade. SCHILL – Como? O FILHO (Em voz mais alta) – Vão voltar à atividade. (Toca a buzina.). SENHORA SCHILL – Que veículo mais engraçado. O FILHO – Uma motoneta5. Todo servente de pedreiro quer ter uma. A FILHA – C’est terrible. SENHORA SCHILL – Marlene está seguindo um curso de aperfeiçoamento em francês e inglês. SCHILL – É muito útil. A Fundição Sol Nascente. Há muito tempo que eu não vou para aquelas bandas. O FILHO – Diz que vai ser ampliada. SCHILL – Correndo assim, você deve falar mais alto. O FILHO (Em voz mais alta) – Diz que vai ser ampliada. Esse foi Stocker, naturalmente. Com o seu Buick, dá poeira em todo o mundo. A FILHA – Um novo-rico. SCHILL – Passe pela Baixada de Pückenried, por favor. Beirando o brejo e, depois, pela alameda, contornando o pavilhão de caça do Eleitor Hasso. Formações de nuvens no céu, amontoando-se, como no verão. É uma bonita terra, assim inundada pelo pôr do sol. Tenho a impressão de vê-la hoje pela primeira vez. A FILHA – Uma atmosfera romântica, como em Adalbert Stifter6. SCHILL – Como em quem? SENHORA SCHILL – Marlene está também estudando literatura. SCHILL – Muito distinto. O FILHO – Aí vem Hofbauer no seu Volkswagen. Voltando de Kassigen. A FILHA – Com os leitões. SENHORA SCHILL – Walter dirige bem. Com que elegância pegou a curva. A gente não precisa ter medo. O FILHO – Vou engrenar a primeira. A estrada está subindo. SCHILL – Eu sempre chegava em cima sem fôlego, quando subia por aqui a pé. SENHORA SCHILL – Que bom eu ter minha capa de peles. Está refrescando. SCHILL – Você errou o caminho, Walter. Por aqui se vai a Beisenbach. É preciso voltar e, depois, virar à esquerda, para a floresta da Fonte Imperial. (O automóvel roda para o fundo. Os quatro cidadãos chegam com o banco de madeira; de casaca, agora; fingem de árvores.). CIDADÃO I – Somos de novo faias, pinheiros. CIDADÃO II – Gamos e cucos e pica-paus. CIDADÃO III – Selva cantada pelos poetas. CIDADÃO IV – Ora atroada pelas buzinas. (O Filho toca a buzina.). O FILHO – Outro gamo. Os raios dos bichos não saem nem mais da estrada. (O Cidadão III dá um pulo e sai.). A FILHA – Perderam o medo. Ninguém mais caça às escondidas. SCHILL – Pare debaixo das árvores. O FILHO – Pronto! SENHORA SCHILL – Que é que você quer fazer? SCHILL – Passear na floresta, a pé. (Desce do carro.) Como é bonito, daqui, o som dos sinos de Güllen. Hora de parar o trabalho. O FILHO – Quatro sinos. Agora, sim, dá prazer ouvi-los. SCHILL – Tudo amarelo: o outono realmente chegou. Folhas secas no chão como montes de ouro. (Pisa o solo fofo de folhas secas.). O FILHO – Vamos esperar você embaixo, perto da ponte. SCHILL – Não é preciso. Eu volto para a vila cortando pela floresta. Vou à assembléia do município. SENHORA SCHILL – Então, Alfredo, nós prosseguimos até Kalberstadt e vamos a um cinema. O FILHO – Salve pai. A FILHA – So long, daddy. SENHORA SCHILL – Até logo! Até logo! (O automóvel com a família dá marcha a ré e desaparece. A família faz adeusinho com a mão. Schill a acompanha com o olhar. Vai sentar-se no banco de madeira que se acha à esquerda. Murmúrio do vento na folhagem. Da direita, chegam Roby e Toby com a cadeirinha onde se encontra Claire Zahanassian, vestida como de costume. Roby traz às costas uma guitarra. Ao lado da liteira vem o Marido Número 9, laureado com o Prêmio Nobel, alto, magro, bigode grisalho. Pode ser interpretado sempre pelo mesmo ator. Atrás, o Mordomo.). CLAIRE ZAHANASSIAN – A floresta da Fonte Imperial. Roby e Toby: parem um momento. (Claire Zahanassian desce da liteira, contempla a floresta e com o lornhão faz uma carícia nas costas do Cidadão I.) Deu broca na casca. Esta árvore vai morrer. (Nota a presença de Schill.) Alfredo! Que bom encontrar você. Estou visitando a minha floresta. SCHILL – Também a floresta da Fonte Imperial pertence a você? CLAIRE ZAHANASSIAN – Também. Posso me sentar ao seu lado? SCHILL – Ora, por favor. Acabo de me despedir da minha família. Vão ao cinema. Walter comprou um automóvel. CLAIRE ZAHANASSIAN – Progresso. (Senta-se ao lado dele, à direita.). SCHILL – Marlene se inscreveu num curso de literatura. E, também, de inglês e francês. CLAIRE ZAHANASSIAN – Está vendo? O idealismo acabou por chegar também a eles. Venha aqui, Zoby, cumprimente. Meu nono marido. Prêmio Nobel. SCHILL – Muito prazer. CLAIRE ZAHANASSIAN – Ele é extraordinário, especialmente quando não pensa. Zoby, por favor, não pense. MARIDO NÚMERO 9 – Mas, meu amorzinho... CLAIRE ZAHANASSIAN – Não se faça de rogado. MARIDO NÚMERO 9 – Então, está bem. (Não pensa.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Está vendo? Agora, ele se parece cem por cento com um diplomata. Faz-me lembrar o Conde Holk, só que esse não escrevia livros. Ele quer se retirar da vida mundana, escrever as suas memórias e administrar a minha fortuna. SCHILL – Parabéns. CLAIRE ZAHANASSIAN – Mas isso me desagrada muito. Marido a gente tem é para pôr em mostra, não como objeto de uso. Vá pesquisar Zoby; as ruínas históricas ficam à esquerda. (O Marido Número 9 vai pesquisar, Schill olha em derredor.). SCHILL – Os dois eunucos. CLAIRE ZAHANASSIAN – Começaram a tagarelar demais. Mandei despachá-los para Hong Kong, para uma das minhas espeluncas de ópio. Lá poderão fumar e sonhar à vontade. O Mordomo não vai tardar a segui-los. Também dele não precisarei mais. Boby: um Roméo et Juliette. (O Mordomo vem do fundo, entrega-lhe uma cigarreira.) Você também quer um, Alfredo? SCHILL – Aceito. CLAIRE ZAHANASSIAN – Sirva-se. Boby: fogo. (Fumam.). SCHILL – Que aroma! CLAIRE ZAHANASSIAN – Quantas vezes estivemos fumando juntos nesta floresta, você ainda se lembra? Cigarros que você comprava na loja da Matilde. Ou que roubava. (O Cidadão I bate com a chave no cachimbo.) Outra vez o pica-pau. CIDADÃO IV – Cuco, Cuco! SCHILL – E o Cuco. CLAIRE ZAHANASSIAN – Você quer que Roby toque qualquer coisa na guitarra? SCHILL – Quero. CLAIRE ZAHANASSIAN – Toca bem, esse assassino privilegiado: preciso dele para os meus momentos de meditação. Detesto gramofones e rádios. SCHILL – Lá no Vale da África, Há um Batalhão Marchando. CLAIRE ZAHANASSIAN – A tua canção preferida. Eu a ensinei a ele. (Silêncio. Fumam. Cuco. Etc. Murmúrios da floresta. Roby toca a balada.). SCHILL – Você teve... quero dizer, nós tivemos um filho. CLAIRE ZAHANASSIAN – Tivemos. SCHILL – Era varão ou menina? CLAIRE ZAHANASSIAN – Menina. SCHILL – E que nome foi que você lhe pôs? CLAIRE ZAHANASSIAN – Geneviève. SCHILL – Bonito nome. CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu a vi somente uma vez. Quando nasceu. Depois, a tiraram de mim. A Assistência Cristã. SCHILL – Que cor tinha seus olhos? CLAIRE ZAHANASSIAN – Ainda não estavam abertos. SCHILL – E os cabelos? CLAIRE ZAHANASSIAN – Pretos: penso eu; mas isso é freqüente, nos recém-nascidos. SCHILL – É sim. (Silêncio. Fumam. Música da guitarra.) Onde foi que ela morreu? CLAIRE ZAHANASSIAN – Na casa de umas pessoas, esqueci como se chamam. SCHILL – De quê? CLAIRE ZAHANASSIAN – Meningite. Também de outra moléstia, parece. Recebi o aviso das autoridades. SCHILL – Em caso de morte, pode-se ter confiança nelas. (Silêncio.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Eu lhe falei da nossa filha. Agora, você fale de mim. SCHILL – De você? CLAIRE ZAHANASSIAN – Sim, de como eu era, quando tinha dezessete anos, quando você me amava. SCHILL – Certa vez, tive de procurar você durante um tempo enorme no palheiro de Peter e acabei descobrindo-a dentro da caleça, com apenas a camisa em cima do corpo e uma palha no canto da boca. CLAIRE ZAHANASSIAN – Você era forte e corajoso. Brigou com o ferroviário que me seguiu na rua. Eu enxuguei o sangue do seu rosto com a minha anágua vermelha. (Cessa a música da guitarra.) A balada acabou. SCHILL – Ainda: Ó Doce e Nobre Pátria. CLAIRE ZAHANASSIAN – Roby sabe essa também. (Nova música na guitarra.). SCHILL – Eu lhe agradeço pelas coroas, os crisântemos e as rosas. Fazem um bonito efeito em cima do caixão, no Apóstolo de Ouro. Distinto. Já há duas salas cheias delas. Chegamos aonde se queria chegar. Estamos sentados, pela última vez, na nossa velha floresta, repleta de cantos de Cuco e murmúrio do vento nas folhas. Hoje à noite, realiza-se uma assembléia do município. Eu serei condenado à morte e um deles me matará. Não sei quem será nem onde irá fazê-lo, sei somente que cheguei ao fim de uma existência absurda. CLAIRE ZAHANASSIAN – Levarei você, no seu caixão, para Capri. Mandei erguer um mausoléu no parque do meu palazzo. Rodeado de ciprestes. Com vista para o Mediterrâneo. SCHILL – Conheço só de fotografias. CLAIRE ZAHANASSIAN – Azul profundo. Um panorama deslumbrante. É lá que você irá ficar. Um morto junto de um ídolo de pedra. Seu amor morreu há muitos anos. O meu amor não podia morrer. Mas, tampouco, viver. Tornou-se qualquer coisa má, como eu mesma, como os cogumelos venenosos e as raízes em forma de rostos cegos desta floresta; uma coisa má, oculta pela luxuriante e dourada vegetação dos meus bilhões. Foram eles que estenderam seus tentáculos para você, à procura da sua vida. Porque ela me pertence. Pela eternidade. Agora, você ficou preso nas suas malhas, está perdido. Cedo, não restará de você senão a minha recordação de um amante morto, um meigo fantasma numa casa em ruínas. SCHILL – Agora acabou também Ó Doce e Nobre Pátria. (Volta o Marido Número 9.). CLAIRE ZAHANASSIAN – O Prêmio Nobel. Voltando das suas Ruínas. Então, Zoby? MARIDO NÚMERO 9 – Os primórdios da era cristã. Destruídas pelos hunos. CLAIRE ZAHANASSIAN – É pena. Seu braço, Roby e Toby, a cadeirinha. (Sobe para a liteira.) Adeus, Alfredo. SCHILL – Adeus, Clara. (A liteira é levada para o fundo, Schill fica sentado no banco. As árvores vão guardar seus galhos. Do alto, desce uma boca de cena, com o pano e as sanefas habituais. No frontão, a inscrição: “GRAVE É A VIDA, ALEGRE A ARTE”. Do fundo chega o Polícia, trajando nova e luxuosa farda, e vai sentar-se ao lado de Schill. Chega um Cronista de rádio e começa a falar ao microfone, enquanto os munícipes de Güllen se reúnem. Todos trajando novíssimas galas, todos de casaca. Por toda parte, fotógrafos, jornalistas, cinegrafistas com suas câmeras.). O LOCUTOR DE RÁDIO – Prezados ouvintes. Depois de nossa reportagem na casa que a viu nascer e a entrevista com o Pároco, vamos presenciar uma assembléia do município. Chegamos, assim, ao momento culminante da visita da Senhora Zahanassian à sua tão simpática quão aprazível vila natal. A famosa milionária não se acha presente, é verdade, mas o Burgomestre deverá fazer, em seu nome, uma importante declaração. Estamos com o nosso microfone instalado no Teatro do Apóstolo de Ouro, o Hotel no qual Goethe passou uma noite. No palco, que, habitualmente, serve para reuniões de sociedades recreativas e para os espetáculos, que, de onde em onde, vem dar aqui o Teatro de Comédia de Kalberstadt, estão se reunindo os homens. Isso de acordo com uma velha tradição local, ao que acaba de nos informar o Burgomestre. As mulheres ocupam a platéia – isso, também, de acordo com a tradição. Atmosfera das grandes solenidades, ansiosa expectativa. Para aqui convergiram os operadores das Atualidades Cinematográficas, bem como os meus colegas da televisão e jornalistas do mundo inteiro. E, agora, o Burgomestre vai iniciar seu discurso. (O Locutor leva seu microfone para junto do Burgomestre, que está no meio do palco, os homens de Güllen formando semicírculo a seu redor.). O BURGOMESTRE – Dou as boas-vindas à assembléia do município de Güllen. Declaro aberta a sessão. Na ordem do dia: um único item. Tenho a honra de comunicar que a Senhora Claire Zahanassian, filha do nosso eminente concidadão, o arquiteto Fritz Waescher, tenciona nos doar a importância de um bilhão. (Um murmúrio corre pela imprensa.) Quinhentos milhões para a cidade e quinhentos milhões para serem distribuídos entre todos os cidadãos. (Silêncio.). O LOCUTOR DE RÁDIO (Em voz sufocada) – Momento de grande sensação, prezados ouvintes. Uma doação que, de um só golpe, transforma em pessoas abastadas os habitantes desta pequena cidade e, assim, representa uma das maiores experiências sociais do nosso tempo. Compreende-se que a assembléia esteja como que aturdida. O silêncio é absoluto. Profunda emoção em todos os rostos. O BURGOMESTRE – Dou a palavra ao Diretor do Ginásio. (O Locutor de rádio aproxima-se, com o microfone, do Professor.). O PROFESSOR – Cidadãos de Güllen. Precisamos nos dar conta, claramente, de que a senhora Claire Zahanassian visa, com essa doação, a qualquer coisa muito precisa. Que deseja a Senhora Zahanassian? Quer encher-nos de dinheiro, cobrir-nos de ouro, reconduzir à prosperidade as Indústrias Wagner, Bockmann, a Fundição Sol Nascente? Sabeis que não é assim. A Senhora Claire Zahanassian tem vistas mais elevadas. Em troca do seu bilhão, ela quer justiça, a justiça. Quer que a nossa coletividade viva de acordo com os princípios da justiça. Essa exigência nos deixa assombrados. Com que, então, a nossa coletividade não vivia de acordo com os princípios da justiça? CIDADÃO I – Nunca viveu! CIDADÃO II – Toleramos um crime! CIDADÃO III – Um erro judiciário! CIDADÃO IV – O perjúrio! UMA VOZ DE MULHER – A presença de um patife! OUTRAS VOZES – Apoiado! O PROFESSOR – Povo de Güllen! Essa a dolorosa verdade: toleramos a injustiça. Reconheço plenamente as possibilidades materiais que o bilhão nos oferece, não me passa, de modo nenhum, despercebido que a pobreza é a causa de tanto mal e de tanta aflição e, contudo, afirmo: não se trata de uma questão de dinheiro. (Aplausos estrondosos.) Não se trata de bem-estar e de conforto, não se trata de luxo; trata-se de saber se queremos os triunfos da justiça, e não somente da justiça, mas de todos os ideais pelos quais vieram, lutaram e morreram os nossos avoengos e que constituem os valores morais da nossa civilização, da civilização ocidental. (Aplausos estrondosos.) É a liberdade que está em perigo, quando se violam os preceitos do amor ao próximo, se menospreza o mandamento de proteger os fracos, se ofende a instituição do matrimônio, se burla um Tribunal, se atira à miséria uma jovem mãe. (Gritos de indignação.) Precisamos impor os nossos ideais, em nome de Deus e ainda que com sacrifício de vidas. (Aclamações.) A riqueza terá um sentido, somente se dela brotar, com abundância, a graça. Mas se é bafejado pela graça quem dela tem fome. Habitantes de Güllen: sentis essa fome do espírito e não somente a outra, profana, a fome do corpo? É essa a pergunta que, na qualidade de Diretor do Ginásio, desejo formular. Somente não tolerando mais o mal, somente recusando, a todo o preço, viver por mais tempo num mundo da injustiça, é que tereis o direito de aceitar o bilhão da Senhora Zahanassian e cumprir a condição, à qual essa doação está ligada. É para isso, povo de Güllen, que peço a vossa reflexão. (Entusiásticas aclamações.). O LOCUTOR DE RÁDIO – Essas - senhoras e senhores ouvintes, são as aclamações da assembléia. Estou profundamente emocionado. O discurso do Diretor do Ginásio testemunhou uma grandeza moral, que, hoje em dia, infelizmente, se tornou bastante rara. Ele denunciou corajosamente toda a sorte de males e injustiças que se verificam, não apenas neste, como, também, em todos os municípios, em toda a parte onde vivem seres humanos. O BURGOMESTRE – Alfredo Schill... O LOCUTOR – Agora, é novamente o Burgomestre que está com a palavra. O BURGOMESTRE – Alfredo Schill: devo dirigir-lhe uma pergunta. (O Polícia dá uma cotovelada em Schill. Este se levanta. O Locutor de rádio chega com o microfone perto dele.). O LOCUTOR DE RÁDIO – E, agora, a voz do homem por proposta do qual se constituiu o Fundo Zahanassian, a voz de Alfredo Schill, o amigo de mocidade da benfeitora. Alfredo Schill é um homem robusto, que orça pelos setenta anos de idade, um rijo güllense de quatro costados, emocionado, naturalmente, mas penetrado de gratidão e de tranqüila satisfação. O BURGOMESTRE – É a sua pessoa que devemos a oferta da doação, Alfredo Schill. Tem consciência disso? (Schill diz qualquer coisa em voz baixa.). O LOCUTOR DE RÁDIO – O senhor precisa falar mais alto, meu velho, para que os nossos ouvintes também possam escutar. SCHILL – Sim. O BURGOMESTRE – Está disposto a acatar a nossa decisão sobre a aceitação ou recusa da doação Claire Zahanassian? SCHILL – Estou. O BURGOMESTRE – Alguém deseja dirigir alguma pergunta a Alfredo Schill? (Silêncio.) Alguém deseja fazer alguma observação a respeito da doação da Senhora Zahanassian? (Silêncio.) O Senhor Pároco? (Silêncio.) O Senhor Médico Municipal? (Silêncio.) A autoridade policial? (Silêncio.) A oposição política? (Silêncio.) Vou proceder à votação. (Silêncio. Somente o zumbido das câmeras cinematográficas, os flashes dos fotógrafos.) Todos aqueles que, com coração puro, querem que se cumpra a justiça, levantem o braço. (Todos, menos Schill, levantam o braço.). O LOCUTOR DE RÁDIO – Silêncio absoluto na sala do Teatro. Apenas uma selva de braços erguidos, como uma gigantesca conspiração em favor de um mundo melhor e mais justo. Só o velhote permanece sentado, imóvel, sobrepujado pela alegria. A sua meta foi atingida: a doação, graças à sua generosa amiga da mocidade. O BURGOMESTRE – A doação da Senhora Claire Zahanassian está aceita. À unanimidade. Não pelo dinheiro. A ASSEMBLÉIA – Não pelo dinheiro. O BURGOMESTRE – Mas, sim, pela justiça. A ASSEMBLÉIA – Mas, sim, pela justiça. O BURGOMESTRE – E por um imperativo da consciência. A ASSEMBLÉIA – E por um imperativo da consciência. O BURGOMESTRE – Porque não podemos viver, tolerando entre nós um crime. A ASSEMBLÉIA – Porque não podemos viver, tolerando entre nós um crime. O BURGOMESTRE – Que devemos extirpar. A ASSEMBLÉIA – Que devemos extirpar. O BURGOMESTRE – Para não causar dano às nossas almas. A ASSEMBLÉIA – Para não causar dano às nossas almas. O BURGOMESTRE – E aos nossos bens mais sagrados. A ASSEMBLÉIA – E aos nossos bens mais sagrados. SCHILL (Num grito) – Meu Deus! (Todos estão em pé, com o braço solenemente erguido, mas o fato é que houve um enguiço na filmagem das Atualidades Cinematográficas.). O CINEGRAFISTA – Sinto muito, Senhor Burgomestre, mas a iluminação pifou. Outra vez o final da votação, por favor, sim? O BURGOMESTRE – Outra vez? O CINEGRAFISTA – Para as Atualidades Cinematográficas. O BURGOMESTRE – Pois não, naturalmente. O CINEGRAFISTA – O refletor está em ordem? UMA VOZ – Tudo a postos. O CINEGRAFISTA – Então, vamos lá. (O Burgomestre retoma a pose.). O BURGOMESTRE – Todos aqueles que, com coração puro, querem que se cumpra a justiça, levantem o braço. (Todos levantam o braço.) A doação da Senhora Claire Zahanassian está aceita. À unanimidade. Não pelo dinheiro. A ASSEMBLÉIA – Não pelo dinheiro. O BURGOMESTRE – Mas, sim, pela justiça. A ASSEMBLÉIA – Mas, sim, pela justiça. O BURGOMESTRE – E por um imperativo da consciência. A ASSEMBLÉIA – E por um imperativo da consciência. O BURGOMESTRE – Porque não podemos viver, tolerando entre nós um crime. A ASSEMBLÉIA – Porque não podemos viver, tolerando entre nós um crime. O BURGOMESTRE – Que devemos extirpar. A ASSEMBLÉIA – Que devemos extirpar. O BURGOMESTRE – Para não causar dano às nossas almas. A ASSEMBLÉIA – Para não causar dano às nossas almas. O BURGOMESTRE – E aos nossos bens mais sagrados. A ASSEMBLÉIA – E aos nossos bens mais sagrados. (Silêncio.). O CINEGRAFISTA (Em voz baixa) – Senhor Schill! Como é? (Silêncio. Decepcionado.) Bem, então nada. Pena, porém. Aquele “Meu Deus” de alegria era formidável. O BURGOMESTRE – Os senhores da imprensa, rádio, televisão e cinema estão convidados para uma pequena ceia. No restaurante. É conveniente que deixem o Teatro, passando pela porta da caixa. Para as senhoras, será servido um chá no jardim do Apóstolo de Ouro. (O pessoal da imprensa - rádio, televisão e cinema - encaminha-se para o fundo e sai. Os homens de Güllen permanecem imóveis no palco. Schill levanta-se, faz menção de ir embora.). O POLÍCIA – Fique aí! (Força Schill a sentar-se.). SCHILL – Querem que seja ainda hoje? O POLÍCIA – Naturalmente. SCHILL – Pensei que seria melhor, talvez, na minha casa. O POLÍCIA – Vai ser aqui mesmo. O BURGOMESTRE – Não está mais ninguém na platéia? (O Cidadão III e o Cidadão IV olham lá para baixo.). CIDADÃO III – Ninguém. O BURGOMESTRE – E nas galerias? CIDADÃO IV – Completamente vazias. O BURGOMESTRE – Então, fechem as portas. Ninguém deve mais entrar na sala. (Os dois vão até a platéia.). CIDADÃO III – Fechei. CIDADÃO IV – Fechei. O BURGOMESTRE – Apaguem as luzes. O luar penetra através da janela das galerias. É o suficiente. (A cena fica às escuras. À débil luz do luar, os homens de Güllen podem ver-se apenas de modo indistinto.) Façam alas. (Os güllenses fazem duas alas, ao fundo das quais se encontra o Ginasta, agora trajando elegantes calças brancas e com uma echarpe vermelha a tiracolo, por cima da camisa de malha.) Senhor Pároco, por favor. (O Pároco se acerca lentamente de Schill, senta-se ao seu lado.). O PÁROCO – Bem, Schill, chegou a sua hora. SCHILL – Um cigarro. O PÁROCO – Um cigarro, Senhor Burgomestre. O BURGOMESTRE (Com calor) – Mas naturalmente. Especial. (Entrega a cigarreira ao Pároco, que a apresenta a Schill. Este pega um cigarro, o Polícia dá-lhe fogo, o Pároco devolve a cigarreira ao Burgomestre.). O PÁROCO – Como já disse o Profeta Amós... SCHILL – Não, por favor. (Schill fuma.). O PÁROCO – Não está com medo? SCHILL – Não muito, agora. (Schill fuma.). O PÁROCO (Não tendo outro remédio) – Vou rezar pelo senhor. SCHILL – Reze pelo povo de Güllen. (Schill fuma. O Pároco levanta-se lentamente.). O PÁROCO – Deus tenha piedade de nós. (O Pároco vai vagarosamente enfileirar-se no meio dos outros.). O BURGOMESTRE – Levante-se, Alfredo Schill. (Schill hesita.). O POLÍCIA – Levante-se, animal. (Levanta-o à força.). O BURGOMESTRE – Cabo Hahncke, contenha-se. O POLÍCIA – Desculpe, perdi as estribeiras. O BURGOMESTRE – Venha, Alfredo Schill. (Schill joga o cigarro no chão, apaga-o, pisando-o com o pé. Depois, vai lentamente para o meio da cena, dando as costas para o público.) Avance entre as alas. (Schill hesita.). O POLÍCIA – Vamos, ande com isso. (Schill avança lentamente no meio das duas alas de homens silenciosos. Lá no fundo, encontra pela frente o Ginasta. Schill pára, volta-se, vê as duas alas de homens se fecharem impiedosamente sobre ele, cai de joelhos. As duas alas transformam-se num novelo humano silencioso, que se infla, retesa e, lentamente, se abaixa. Da esquerda baixa, chegam os jornalistas. A cena torna a iluminar-se.). PRIMEIRO JORNALISTA – Que está acontecendo por aqui? (O novelo humano se desmancha. Os homens vão reunir-se ao fundo, em silêncio. Fica para trás somente o Médico, ajoelhado diante de um cadáver, sobre o qual se acha estendida uma toalha de mesa, de xadrez, como as que se usam nos cafés. O Médico levanta-se. Guarda o estetoscópio.). O MÉDICO – Colapso cardíaco. (Silêncio.). O BURGOMESTRE – Morreu de alegria. PRIMEIRO JORNALISTA – Morreu de alegria. SEGUNDO JORNALISTA – As mais belas histórias são as que a vida escreve. PRIMEIRO JORNALISTA – Vamos ao trabalho. (Os jornalistas saem depressa pelo fundo, à direita. Da esquerda, chega Claire Zahanassian, seguida pelo Mordomo. Vê o cadáver, pára, depois vai lentamente para o meio da cena, volta-se para o público.). CLAIRE ZAHANASSIAN – Quero que o tragam aqui. (Roby e Toby chegam com uma padiola, colocam nela Schill e o levam aos pés de Claire Zahanassian, que permanece imóvel.) Descubra-o, Boby. (O Mordomo descobre o rosto de Schill. Ela o contempla longamente, imóvel.) Está outra vez como era há muito tempo, a minha pantera preta. Torne a cobri-lo. (O Mordomo torna a cobrir o rosto de Schill.) Levem-no para o ataúde. (Roby e Toby levam o cadáver para fora, pela esquerda.) Boby: acompanhe-me ao meu quarto. Mande arrumar a bagagem. Vamos partir para Capri. (O Mordomo oferece-lhe o braço, ela se dirige lentamente para a esquerda, mas pára, antes de sair.) Senhor Burgomestre. (Do fundo, do meio das fileiras dos homens silenciosos, avança lentamente o Burgomestre.) O cheque. (Entrega-lhe um papel e sai com o Mordomo. Se os trajes, cada vez melhores, expressaram até aqui, de modo discreto, sem insistência, mas com possibilidades cada vez menores de passar despercebido o bem-estar crescente, se a cena se tornou cada vez mais atraente e se transformou e enriqueceu, subindo na escala social, como se de um alojamento de gente pobre nos tivéssemos mudado, imperceptivelmente, para um moderno e aprazível bairro residencial de cidade, esse crescendo encontra agora, no quadro final, a sua apoteose. Aquele mundo pardacento converteu-se em qualquer coisa cintilante, metálica, transformou-se em riqueza e, agora, desemboca num happy end universal. Bandeiras, grinaldas, cartazes, luzes de neon enfeitam a renovada Estação da estrada de ferro; a tudo isso se acrescenta os habitantes de Güllen, mulheres e homens, trajando vestidos de noite e casacas e que formam dois coros parecidos com os da tragédia grega, não por acaso, mas como para determinar uma posição, tal como se um navio - avariado e indo à guerra - estivesse lançando seu derradeiro apelo.). CORO I – Monstruosas são muitas coisas, / Os grandes terremotos, / Montes cuspindo fogo, mares encapelados, / Guerras também, / Tanques que rugem nos campos de trigo / E o fungo, como um sol, da bomba atômica. CORO II – Mas nada mais monstruoso / Do que a pobreza: / Não sabe aventuras, / Sufoca a desolada humanidade / Nas malhas monótonas / De um dia vazio após dias vazios. AS MULHERES – Vêem as mães, desesperadas, / Definharem seus seres queridos. OS HOMENS – Mas o homem / Pensa em revoltas, / Medita traições. CIDADÃO I – Vagueia por aí, sapatos rotos, / CIDADÃO III – Cigarro ordinário no canto da boca; / CORO I – Desertas estão as usinas, / Outrora, ganha-pão. CORO II – E evitam o lugar nos trens fulmíneos. TODOS – Oh nós ditosos, / SENHORA SCHILL – Para os quais uma sorte benigna / TODOS – Tudo isso mudou. AS MULHERES – Elegante vestido ora atavia / Nosso corpo gracioso. O FILHO – Guia o rapaz seu carro tipo esporte, / OS HOMENS - A limusine, o dono da loja. A FILHA – Corre a moça atrás da bola, / No chão vermelho. O MÉDICO – Na nova sala, cor verde-claro, de operações, / Alegremente opera o cirurgião. TODOS – Fumega a ceia nas casas. / Contente e bem calçado, / Cada qual saboreia um cigarro melhor. O PROFESSOR – Sofregamente aprendem, / os sôfregos de saber. CIDADÃO II – Tesouros amontoa o industrial dinâmico, / TODOS – Rembrandt sobre Rubens, / O PINTOR – E a arte alimenta os artistas / Fartamente. O PÁROCO – Rebenta o Templo, de tantos cristãos, / No natal, pela Páscoa bem como Pentecostes. TODOS – E os trens poderosos, / Nos trilhos que brilham, / Chispando de vila em vila e unindo os povos, / Tornaram a parar. (Da esquerda, chega o Condutor do Trem.). O CONDUTOR DO TREM – Güllen. O CHEFE DA ESTAÇÃO – Rápido Güllen-Roma: ocupem seus lugares, por favor! Carro-restaurante na cabeça do trem! (Do fundo, chega Claire Zahanassian na sua liteira, imóvel, como um velho ídolo de pedra, a avança por entre os dois coros, acompanhada pelo séquito.). O BURGOMESTRE – Vai partir, TODOS – Aquela que generosamente nos presenteou. A FILHA – A nossa benfeitora. TODOS – Com o seu nobre séquito! (Claire Zahanassian desaparece, saindo à direita. Por fim, percorrendo um longo trajeto, os serviçais carregam para fora o ataúde.). O BURGOMESTRE – Possa ela ser feliz. TODOS – Leva consigo algo precioso, que lhe foi confiado. (O Chefe da Estação dá o sinal para a partida do trem.) Mas roguemos O PÁROCO – A Deus TODOS – Que proteja, no turbilhão frenético do tempo, O BURGOMESTRE – O nosso bem-estar. TODOS – Preserve os nossos bens sagrados, / Preserve-nos a paz, / Preserve a liberdade. / Longe de nós fique a noite, / Nunca mais em sua treva mergulhe esta vila, / Ressuscitada e esplêndida, / Para que felizmente gozemos / A nossa felicidade. FIM NOTAS DO TRADUTOR 1. O sobrenome da protagonista, no original alemão, é Zachanassian. O som ‘ch’ alemão, contudo – como bem sabe quem conhece, por exemplo, o nome do compositor Bach -, não corresponde ao nosso ‘ch’, mas, antes, ao de um ‘h’ aspirado ou ao do ‘j’ espanhol; por essa razão preferimos grafá-lo Zahanassian. O nome do mais importante dos visitados é, no original alemão, Ill; julgamos conveniente, no entanto, para facilitar sua pronúncia por parte dos atores, e sua compreensão por parte da platéia, modificá-lo para Schill. Do mesmo modo, por motivo de eufonia ou de conveniência teatral, foram modificados, no diálogo, outros nomes de personagens ou localidades. 2. A peça é de 1955. Daí o ano de 1910 corresponder a quarenta e cinco anos antes da data da representação. 3. Jugendstil é o nome que recebeu na Alemanha – por motivo da revista Jugend, de Munique, que o preconizava – aquele estilo arquitetônico do começo do século XX, que, alhures e conforme o país se chamou Art Nouveau, Liberty, Modern Style, Floreal, etc. 4. Aqui, como pouco mais adiante, quando falará do Aga e de Ali Khan, deve-se novamente lembrar que a peça é de 1955. 5. Realmente, a peça fala em um Messerschmidt, um automovelzinho de três rodas, mais ou menos como o Romi-Isetta existente no Brasil, na década de 50. 6. Poeta austríaco, nascido em 1805 e falecido em 1868. Autor, entre outras obras, do romance Nachsommer (Veranico), que foi recebido como uma espécie de Wilhelm Meister austríaco, e dos contos Studien (Estudos), caracterizados por um sentimento da natureza entre o lírico e o fantástico.

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